Navegue entre as páginas

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O sentimento do Sagrado?



O texto que lerão abaixo me foi encaminhado por um amigo, coincidentemente, em um momento excessivamente crítico de minha vida, momento esse que, segundo alguns, seria propício ao resgate de sentimentos oníricos e um retorno às nossas origens religiosas/místicas. Para essas pessoas, uma posição ateísta apenas se sustenta até o momento em que "não sentimos que precisamos de Deus" ou que "somos tocados pela grandiosidade de mistérios que não explicamos". Contudo, tal visão sobre o ateísmo é parcial e se refere apenas aos que são ateus por desilusão com o divino ou por perceberem no ateísmo uma tribo na qual se refugiar quando nada mais parece fazer sentido. Essas duas situações podem ser reduzidas a um fator comum: uma necessidade de sentido terceirizada. Assim, preenche-se o vazio da alma, carente de religiosidade mística, com uma religiosidade material e o ateísmo é tomado, equivocadamente, por uma religião de descrentes e, como tal, se baseia na emoção de uma fé na inexistência de um Deus, a qual, como toda fé, é  irracional e facilmente substituída por qualquer crença que produza maior conforto afetivo-emocional, preencha o vazio da alma e afaste o medo do nada que consome a pré e a pós-existência material. O verdadeiro ateísmo não se comove com o vazio ou com o nada e se produz pela percepção das recorrentes incoerências e contradições, dogmatica e inteligentemente, negligenciadas  pelo 'conhecimento' religioso e difíceis de serem engolidas, a menos que se predisponha a não aplicar os rigores da razão, sem concessões de conveniência, a esse tipo de conhecimento. Há aqueles que defendem a possibilidade de se dividir a conduta humana, de uma mesma pessoa, em duas (ou mais) dimensões, a uma aplicando-se o rigor da razão (Ciência, Filosofia, Técnica...) e a outra não (Religião, Arte...). Contudo, penso ser isso difícil na prática, pois a capacidade para crer é algo inerente à personalidade da pessoa e se manifestará independentemente de sua vontade em todas as dimensões de sua vida, assim como a capacidade para não crer. Ou seja, um cientista ou filósofo crente terá maior propensão a adotar determinada crença de sua área de atuação e com menos rigor cético, que aquele que, por princípio, o aplica sobre o tipo de conhecimento mais difícil de desvencilhar que possuímos: o religioso. É em momentos como o que vivo, atualmente, e nos quais sou confrontado com a possibilidade de ajoelhar-me diante do Sagrado, que minhas convicções ateístas se mostram firmes. Não se trata se enrigecer-me à custa de uma alternativa viável, em decorrência de uma demonstração de força ou pelo desejo de estar certo em meu posicionamente, mas porque, simplesmente, não consigo ver sentido na posição religiosa quando aplico à ela o mesmo rigor cético que aplico aos demais ramos da minha vida...no bom e velho "skolês": não desce redondo. Não obstante, partilho com vocês o referido texto, por considerá-lo interessante e de extremo bom gosto, além do que, seu posicionamento quanto à emoção insurgente diante do velho e  quanto aos rumos que a Religião tem tomado em nossa sociedade fazem o maior sentido. Com vocês, então, "O sentimento do Sagrado", do Prof. Joel Pimentel de Ulhôa:

O SENTIMENTO DO SAGRADO

Joel Pimentel de Ulhôa*

'A natureza está cheia de deuses...'
Tales de Mileto.


                                   "Independentemente de crermos ou não em um Deus pessoal, transcendente, uma coisa parece óbvia e constante: não há ser humano que não se comova diante do sagrado. Quando nos adentramos num velho monumento de uma civilização perdida, é um impacto o encontro do lugar do sacrifício às divindades deles. A pedra silenciosa e manchada de seus altares, a ara onde se extraiam, com facas de sílica, os corações palpitantes das virgens, o silêncio de um túmulo com os sinais da liturgia e do ritual do sepultamento de milênios atrás, com as marcas da saudade nas flores secas e na grinalda da jovem viúva, deixada, como despedida, na maçaneta da porta, como no túmulo de Tutancâmon -- não há, nesse clima sagrado, quem de repente não se veja falando mais baixo, sussurrando mesmo, e curvando a espinha para enxergar de mais perto o traço, na pedra, do buril do passado com que mãos humanas, como as nossas, cinzelaram o lugar da adoração. É o ambiente, é o clima, é um não sei o quê – eu diria: é a presença ou a sombra do sagrado que invade o nosso espírito e nos faz pensar. Mais que isso: nos faz sentir.

                                   Algo parecido nos sucede, sempre, diante do mistério da morte. É uma solenidade, um respeito que nos faz chorar baixinho amassando os nossos lenços com a dor da despedida, e nos interrogando, sem resposta, sobre por onde andarão os nossos mortos. Nunca pensamos, como num gesto de autoproteção, que ali tudo se acabou e que dentro em pouco aquele ser querido será pó: queremos acreditar na continuidade, na permanência, no para-onde-foi. É o sagrado nos fazendo transcender o aqui e o agora. O sagrado nos fazendo transcendentes, -- e nisso está um grande mistério!

                                   Quando entramos numa igreja medieval, as góticas da Europa, com suas torres trabalhadas, os gregos capitéis de suas colunas, seus arcobotantes vigiados por suas gárgulas grotescas, seus arcos se encontrando, em prece, nas abóbodas altíssimas e sombrias, sentimos que, ali, é um lugar de recolhimento, que nos faz cair de joelhos e rezar. Há o sagrado nos espreitando de algum lugar oculto, e sentimos que nosso espírito é puxado para o alto, para muito acima das banalidades do terra-a-terra da mesmice  dessa vidinha que vamos costurando e levando com nosso dia-a-dia. As rusguinhas e bate-bocas dos políticos, o enfadonho ramerrão do trabalho alienante, a busca da sobrevivência, a preocupação com o lucro e com as oscilações da bolsa, o sonho da propriedade, as tolas vaidades, as presunções, as tensões do último capítulo da novela de TV, -- tudo isso, coisas humanas mas tão pequenas diante do silêncio reverencioso e meio que no lusco-fusco de uma grande catedral!

                                   O mundo está perdendo muito com a vulgarização de tudo. As igrejas, por exemplo, ao se terem transformado em palco para música pop ou para a histrionice aeróbica de padres e pastores do showbiz. É uma pena porque, na verdade, não é a instituição a maior vítima, mas o ser humano. Vai-se à igreja como se vai a um show e dali  se enxota o sagrado, o sentimento de elevação. Confunde-se suar com  emocionar e desodorante com comunhão.

                                   Não sei se religião dos pobres tem que ser religião “pobre”, sem “clima”, num senta-levanta sem graça, que exige mais músculo que introspecção, com músicas de gosto duvidoso. Não entendo isso, talvez por ser “quadrado”, talvez porque, de há muito, não me faz falta essa ginástica. Mas o sagrado, sim, este me faz falta. Em qualquer  forma de suas manifestações: sentir o palpitar da vida que brota silenciosa e abandonada nas fendas de uma pedra; o misterioso mergulho na vida da criança que nasce; a beleza de uma peça de Sófocles ou de uma Pietà de Michelangelo;  a quietude de quem penetra no mundo da morte; a beleza augusta de um gesto generoso; o mistério do tempo passando...Tudo isso, sacralização do cotidiano, coisas sagradas que dão sentido ao mundo profano e sem o quê tudo, tudo mesmo, é de uma banalidade de fazer pena!

                                   Não podemos desprezar o mistério que habita o mundo sem pagar, por isso, um preço muito alto, -- que é o preço do vazio em que, cada dia mais, se transforma a vida!

                                   Ter, porém, o sentimento do sagrado e cultivá-lo não é abdicar da forma de pensar que herdamos dos gregos, ou seja, da razão especulativa, bem humana e liberta da consciência religiosa mítica, que os gregos descobriram para nós. Mas é compreender, como dizia Tales de Mileto, no século VII antes de Cristo, que o mundo está cheio de deuses e que para nós é muito importante aprender a não banalizar e a preservar a solene profundidade desse estofo sagrado que nos envolve, e que a sabedoria da humanidade, ao longo da história, sempre soube revelar. Com cada gesto nosso, contudo, podemos, sem perceber e a todo instante, estar achatando o mundo e vulgarizando a vida: será que é assim mesmo que tem que ser?"

*Joel Pimentel de Ulhôa é professor da Universidade Federal de Goiás e seu ex-reitor.






quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A 'Coisa': os artifícios da língua portuguesa

(autor/es desconhecido/s)

      "A palavra 'coisa' é um 'bombril' do idioma. Tem mil e uma utilidades. É aquele tipo de termo-muleta ao qual a gente recorre sempre que nos faltam palavras para exprimir uma idéia. Coisas do português.
      A natureza das coisas: gramaticalmente, 'coisa' pode ser substantivo, adjetivo, advérbio. Também pode ser verbo: o Houaiss registra a forma 'coisificar'. E no Nordeste há 'coisar': 'Ô, seu coisinha, você já coisou aquela coisa que eu mandei você coisar?'.
      Coisar, em Portugal, equivale ao ato sexual, lembra Josué Machado. Já as 'coisas' nordestinas são sinônimas dos órgãos genitais, registra o Aurélio. 'E deixava-se possuir pelo amante, que lhe beijava os pés, as coisas, os seios' (Riacho Doce, José Lins do Rego). Na Paraíba e em Pernambuco, 'coisa' também é cigarro de maconha.
       Em Olinda, o bloco carnavalesco Segura a Coisa tem um baseado como símbolo em seu estandarte. Alceu Valença canta: 'Segura a coisa com muito cuidado / Que eu chego já.' E, como em Olinda sempre há bloco mirim equivalente ao de gente grande, há também o Segura a Coisinha.
       Na literatura, a 'coisa' é coisa antiga. Antiga, mas modernista: Oswald de Andrade escreveu a crônica O Coisa em 1943. A Coisa é título de romance de Stephen King. Simone de Beauvoir escreveu A Força das Coisas, e Michel Foucault, As Palavras e as Coisas.
       Em Minas Gerais, todas as coisas são chamadas de trem. Menos o trem, que lá é chamado de 'a coisa'. A mãe está com a filha na estação, o trem se aproxima e ela diz: 'Minha filha, pega os trem que lá vem a coisa!'.
        Devido lugar: 'Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça (...)'. A garota de Ipanema era coisa de fechar o Rio de Janeiro. 'Mas se ela voltar, se ela voltar / Que coisa linda / Que coisa louca.' Coisas de Jobim e de Vinicius, que sabiam das coisas.
        Sampa também tem dessas coisas (coisa de louco!), seja quando canta 'Alguma coisa acontece no meu coração', de Caetano Veloso, ou quando vê o Show de Calouros, do Silvio Santos (que é coisa nossa).
        Coisa não tem sexo: pode ser masculino ou feminino. Coisa-ruim é o capeta. Coisa boa é a Juliana Paes. Nunca vi coisa assim!
        Coisa de cinema! A Coisa virou nome de filme de Hollywood, que tinha o seu Coisa no recente Quarteto Fantástico. Extraído dos quadrinhos, na TV o personagem ganhou também desenho animado, nos anos 70. E no programa Casseta e Planeta, Urgente!, Marcelo Madureira faz o personagem 'Coisinha de Jesus'.
         Coisa também não tem tamanho. Na boca dos exagerados, 'coisa nenhuma' vira 'coisíssima'. Mas a 'coisa' tem história na MPB. No II Festival da Música Popular Brasileira, em 1966, estava na letra das duas vencedoras: Disparada, de Geraldo Vandré ('Prepare seu coração / Pras coisas que eu vou contar'), e A Banda, de Chico Buarque ('Pra  ver a banda passar / Cantando coisas de amor'), que acabou de ser relançada num dos CDs triplos do compositor, que a Som Livre remasterizou.         Naquele ano do festival, no entanto, a coisa tava preta (ou melhor, verde-oliva). E a turma da Jovem Guarda não tava nem aí com as coisas: 'Coisa linda / Coisa que eu adoro'.
        Cheio das coisas. As mesmas coisas, Coisa bonita, Coisas do coração, Coisas que não se esquece, Diga-me coisas bonitas, Tem coisas que a gente não tira do coração. Todas essas coisas são títulos de canções interpretadas por Roberto Carlos, o 'rei' das coisas. Como ele, uma geração da MPB era preocupada com as coisas.
        Para Maria Bethânia, o diminutivo de coisa é uma questão de quantidade (afinal, 'são tantas coisinhas miúdas'). Já para Beth Carvalho, é de carinho e intensidade ('ô coisinha tão bonitinha do pai'). Todas as Coisas e Eu é título de CD de Gal. 'Esse papo já tá qualquer coisa...Já qualquer  coisa doida dentro mexe.' Essa coisa doida é uma citação da música Qualquer Coisa, de Caetano, que canta também: 'Alguma coisa está fora da ordem.'
         Por essas e por outras, é preciso colocar cada coisa no devido lugar. Uma coisa de cada vez, é claro, pois uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa. E tal coisa, e coisa e tal. O cheio de coisas é o indivíduo chato, pleno de não-me-toques. O cheio das coisas, por sua vez, é o sujeito estribado. Gente fina é outra coisa. Para o pobre, a coisa está sempre feia: o salário-mínimo não dá pra coisa nenhuma.
        A coisa pública não funciona no Brasil. Desde os tempos de Cabral. Político quando está na oposição é uma coisa, mas, quando assume o poder, a coisa muda de figura. Quando se elege, o eleitor pensa: 'Agora a coisa vai.' Coisa nenhuma! A coisa fica na mesma. Uma coisa é falar; outra é fazer. Coisa feia! O eleitor já está cheio dessas coisas!
         Coisa à  toa. Se você aceita qualquer coisa, logo se torna um coisa qualquer, um coisa-à-toa. Numa crítica feroz a esse estado de coisas, no poema Eu, Etiqueta, Drummond radicaliza: 'Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente.' E, no verso do poeta, 'coisa' vira 'cousa'.
         Se as pessoas foram feitas para ser amadas e as coisas, para ser usadas, por que então nós amamos tanto as coisas e usamos tanto as pessoas? Bote uma coisa na cabeça: as melhores coisas da vida não são coisas. Há coisas que o dinheiro não compra: paz, saúde, alegria e outras cositas más.
        Mas, 'deixemos de coisa, cuidemos da vida, senão chega a morte ou coisa parecida', cantarola Fagner em Canteiros, baseado no poema Marcha, de Cecília Meireles, uma coisa linda. Podemos, ainda, citar o grande mandamento: 'amarás a Deus sobre todas as coisas'. 'Deus'?! Que coisa é essa??!!! Será que 'há mais coisas entre o céu e a Terra do que nossa vã filosofia pode entender'?! Bem, isso é coisa para outra estória...Entendeu o espírito da coisa???!!"


--
Esta mensagem foi verificada pelo sistema de antivírus e
acredita-se estar livre de perigo.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Suicídio, angústia e solidão (resumo)

Walner Mamede Júnior
Maria do Socorro Correia Lima


O suicídio, como qualquer outra escolha, está imerso na solidão. Esta pode ser vista não apenas como motivadora do ato, mas também como sua parte integrante e indissociável. Assim, não se diferencia de outros atos decisórios, constituindo-se como escolha de uma alternativa, a morte, ou fuga de outra, a vida, motivada pela angústia inerente à própria condição humana (Kierkegard). Ao analisarmos alguns trechos de cartas de suicidas, podemos inferir que o suicídio não se difere de outras escolhas no aspecto ‘solidão’, mas apenas no que tange ao ato pré-decisório. A angústia do suicida se refere à sua percepção de que todos nós somos solitários no ato de constituição de nossas escolhas e isso o asfixia a ponto de materializar nele a perda do sentido da vida.

A dor, entendida como perda, advinda do sentimento de frustração e incompletude, é percebida pelo suicida de forma egocêntrica, uma vez que, como fica claro nas cartas analisadas, a percebe como lhe sendo exclusiva e impossível de ser compartilhada. Diante disso, a vida torna-se, para ele, motivo de infelicidade e, portanto, avessa ao ‘Bem’ e, no caso do religioso, a Deus. Nesse momento, a razão descortina a morte, entre tantas alternativas, como resposta ao problema, até então insuperável, e a inocência, em relação à liberdade possível de escolha, se perde. A morte se apresenta como alternativa à vida e impõe o necessário arbítrio, que se fará na direção dela em caso de perda do lastro com a vida. A consciência da liberdade de escolha gera angústia e medo de errar, em um momento de absoluta solidão, que potencializa a solidão ‘a priori’ (impossibilidade de compartilhamento). A escolha, uma vez realizada (no caso do suicida, a morte), gera uma aparente tranqüilidade que antecede a consumação do ato, sempre solitário.