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sábado, 11 de janeiro de 2014

Pequenas considerações sobre o autismo

Walner Mamede

A única coisa na qual somos iguais é na diferença. Contudo, umas características, mais que outras, possibilitam uma maior eficiência social. O autismo é uma diferença em que e em qual nível? Como definir quem é e quem não é autista? A mera consideração do termo "autista" cria uma categoria que se auto-exclui a partir de uma lista de características que o definem e o diferenciam do que é "normal". Aqui caberia a pergunta: quem é mais eficiente na sociedade? A resposta a esta pergunta seria determinante do status social do indivíduo? Se sim, está estabelecida a discriminação, se não, podemos abrir mão de expectativas quanto a resultados sobre qualquer indivíduo na sociedade, em qualquer situação, aceitando de bom grado o que quer que produza, no nível que seja. Isso é possível? Não vislumbro uma terceira possibilidade.

 Se a diferença impede o indivíduo de realizar esta ou aquela tarefa ele possui uma deficiência em relação a outro indivíduo que a realiza e este uma deficiência em relação a outro indivíduo melhor. Não há como fugir a este conceito, a não ser por eufemismos e reducionismos filosóficos dirigidos a interesses particulares. Se existe neurodiversidade e não deficiência ou doença, não existe autismo, pois, traçando-se um continuum do "mais atípico" ao "mais típico" veremos tantas matizes e tantas sobreposições que será impossível caracterizar este ou aquele como autista, Down, Asperger, normal e etc, ruindo a própria noção de "identidade autista" defendida pelo "orgulho autista", uma posição tão política e arbitrária quanto a discriminação do autismo e sua própria caracterização ou graduação. Se existem graus de autismo que demandam cura por sua condição incapacitante, isso caracteriza uma deficiência (mental, no caso) e é muito cômodo aos "quase-normais" requerer uma desmedicalização do problema, descaracterizando o autismo como deficiência para que sejam socialmente aceitos às custas daqueles menos funcionais. Acredito que, logo, aqueles que se encontram no espectro mais funcional buscarão uma outra categoria na qual se enquadrar para, assim, se libertarem do "peso morto".

Defensores do autismo como "estilo de vida" e não como doença a ser curada, afirmam que tentar curar um autista (condição atípica) é tão absurdo quanto tentar curar um indivíduo normal de sua "normalidade" (condição típica). Entretanto, o argumento é furado. Mantendo-se o paralelismo da argumentação, se um "neurotípico" (normal) deve ser curado, a cura completa se encontra no extremo oposto, em direção ao lado menos funcional da "neuroatipia" (autismo em alto grau). Se isso me possibilitar a sobrevivência autônoma, com maior eficiência social e maior qualidade de vida e não comprometer a coesão social, ok, eu quero ser curado. Caso contrário, onde estou é melhor. Não há um dilema ético verdadeiro aqui, apenas uma retórica sofista. Alegam, também que as propostas de cura levam o autista a se sentir insultado. Se o indivíduo é capaz de perceber o insulto, não se encontra em posição de julgar uma proposta de cura para aqueles que são incapazes de tal percepção (autismo em alto grau), estão falando pelos outros e não estão respeitando o próprio lema "por autistas para autistas", que deveria ser melhorado como "por autistas em grau x para autistas no mesmo grau", isso sim seria um processo participativo da ação política, mas é possível? O autista capaz de falar por si mesmo é aquele que está no espectro mais funcional da atipia e esses, claro, não querem ser vistos como doentes pois possuem funcionalidade e eficiência social, querem ser aceitos como são e negam a diversidade dentro de sua própria condição atípica, afirmando uma universalidade inexistente do autismo. Poderíamos compará-los aos judeus que, conforme Hannah Arendt, sendo ricos e gozando de um status econômico superior, não lutavam pela condição de nacionais no país em que moravam e assumiam uma posição de "orgulho judeu", comprometedora do status de seus pares menos abastados e de seu próprio futuro. Assim, os judeus teriam assumido posição semelhante aos autistas, bradando orgulho pela condição em que se encontravam na Europa pré-Grande Guerra, e isso os tornou vulneráveis à exclusão promovida por Hitler, quando perderam sua utilidade como financiadores da elite com o surgimento dos Estados-Nação. A manutenção de um "orgulho judeu", desprezando a possibilidade de obterem nacionalidade e cidadania por defenderem sua própria identidade como uma bandeira, os colocou em uma situação de desprezíveis e dispensáveis na nova ordem social. A diferença seja talvez que os autistas (assim como os surdos, há mais tempo) não abrem mão de sua nacionalidade, estabelecendo um vínculo jurídico e de cidadania com o país no qual vivem. Contudo, autistas de alta funcionalidade, assim como os judeus do alto escalão fizeram de forma menos evidente, arrogam para si o direito de insurgirem como porta-vozes de toda a população autista, buscando afirmar sua própria identidade às custas dos demais. Esta representaria uma incapacidade de se colocar no lugar do outro e de acolher o maior número de perspectivas para a tomada de decisão em uma verdadeira ação política, conforme Hannah Arendt.

Reconhecer a necessidade de categorização da realidade como estratégia de sobrevivência em nada se confunde com a crítica às categorias estabelecidas e reificadas por nossas limitações e hábitos, as quais acabam redundando em leis equivocadas. O truque é, apesar de reconhecê-las como legítimas e necessárias, estar aberto à ideia de que não devem ser universais e definitivas, que suas fronteiras são mais permeáveis e nebulosas do que aparentam a uma primeira análise e que o tema proposto não é tão consensual quanto parece ser.

Os estudos da deficiência buscam romper com categorias pre-definidas que definem o homem a partir de conceitos universais fora do que Kant e, depois dele, Hannah Arendt chamariam de conceitos reflexivos (análise do particular despindo-se de conceitos prévios), estes relacionados a uma flexibilidade intelectual na análise do real. Fazer isso significa não reconhecer os limites arbitrários de uma categoria que define algo por características, convenientemente, escolhidas dentre tantas outras. Simplesmente, dizer que autismo não é deficiência mental é, ao mesmo tempo, reafirmar que existe uma categoria universal que define "deficiência mental" e que autismo não é isso porque se inclui em outra categoria também universal. A rigor, nada rompe, apenas reproduz o que se quer combater imputando a outros o que não quer para si, dentro do paradigma positivista. A meu ver, o ideal seria analisar o particular pelo particular, o que daria a cada um de nós uma sigularidade não existente no outro, pelo simples fato de que em tudo somos diferentes e de que as pretensas "categorias cientificamente determinadas" são meras arbitrariedades destinadas à previsão e controle da realidade, fundadas na racionalidade científica nascida no século XVI e que não dão conta da complexidade do real, levando-nos a decisões e condutas escoradas em uma visão limitada e reducionista. Contudo, como lidar com a coisa pública e políticas sociais sem fragmentar a sociedade em categorias universais que facilitem a tomada de decisões? Apenas o tempo nos dirá (o artigo disponível em http://www.scielo.br/pdf/csc/v14n1/a12v14n1.pdf, complementa minhas reflexões apenas superficiais e pouco sistemáticas aqui disponibilizadas).