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segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Sobre o PT e a Constituição de 88

Walner Mamede

Algumas coisas precisam ficar claras quanto ao posicionamento contrário do PT acerca da Constituição Federal de 88 à época de sua promulgação. Antes disso, alguns pressupostos precisam ser ditos:

-Primeiro, não faço defesa ao PT e sim à ideologia que fundamentou sua criação e, há muito, foi abandonada, na prática, apesar de estar presente de forma fragmentada no discurso, inclusive, pasmem, da direita!

-Segundo, há que se lembrar que o PT era (com ênfase no "era") um partido de esquerda e voltado à causa popular e trabalhista e que seus votos seguiram à risca seus preceitos ideológicos de defesa do social e da classe trabalhadora, algo louvável e que não ocorre hoje. Curiosamente, os partidos de direita adversários (já que o PT se "endireitou"), hoje, nadam de braçada manipulando tal contradição histórica do PT: ora acusando-o de comunista e esquerda radical contrária ao desenvolvimento nacional, ora retratando-o como hipócrita, pelego e "caviar", por abandono à sua militância de esquerda. Ora essa! Pelo princípio da contradição, é impossível que o PT seja as duas coisas ao mesmo tempo, sejamos racionais! Contudo, esse "discurselho" raso e retórico convence fácil os menos aptos e cria oposição não apenas ao PT, mas a toda possibilidade de um governo de esquerda, sem que se tenha, de fato, elementos contra a verdadeira esquerda, mas tão somente contra o PT que não mais representa essa tradição ideológica.

-Terceiro, hoje, a oposição política não é ideológica, ela não existe por divergência quanto ao que seria melhor para o país e sim quanto ao que será melhor para o partido (qualquer que seja), em outras palavras, busca-se o poder pelo poder e caga-se (com o perdão da palavra!) para como isso se reflete sobre o Brasil e nós, seu povo. Prova disso é o pedido de impeachment, sem o menor fundamento legal ou constitucional, que mina a imagem internacional do Brasil e eleva o Risco Brasil, reduzindo investimentos internacionais: não houve dolo comprovado da presidência em ato de lesa pátria, apesar de seus inúmeros tropeços administrativos e da enorme insatisfação popular. A oposição usa isso para manipular a opinião pública e a boiada segue sob o som do berrante.

Dito isso, partamos para o principal:

A Constituição de 88, à época de sua promulgação, se tornou uma colcha de retalhos com predominância dos ideais da direita, não atendendo ao que a esquerda desejava para o país e seus trabalhadores. A exemplo, a esquerda lutava por 40 horas semanais de trabalho (a Constituição impôs 44h); por dois terços a mais de férias do que estava na Constituição; por 100% de acréscimo sobre a hora trabalhada na hora extra (a Constituição impôs só 50%, menos do que já era vigente à época em alguns casos); por melhores condições para a reforma agrária (a Constituição ofertou menos que o Estatuto da Terra, do Marechal Castelo Branco); por aproximação dos militares aos civis em termos de direitos (na Constituição, militares continuaram com regalias e como uma classe à parte, com direitos especiais, que remetiam à Ditadura); por definição clara dos termos para estabilidade no emprego e do aviso prévio (a Constituição colocou isso como artigo a ser regulamentado a posteriori); por obtenção de um texto constitucional finalístico e com um todo coerente (a Constituição foi aprovada com aprox 200 artigos para serem regulamentados e que dão problemas até hoje); por definição de normas claras a favor do trabalhador e da democracia (a Constituição foi aprovada com um grande número de princípios gerais, sem garantia de que sua regulamentação se daria a favor do povo). Deem uma olhada no discurso pronunciado à época sobre tal assunto em http://noblat.oglobo.globo.com/discursos/noticia/2008/11/por-isso-que-pt-vota-contra-texto-da-constituicao-138367.html.

Para a esquerda da época, nomeadamente o PT, a Constituição promoveu avanços importantes, mas estava muito aquém do que poderia promover e deixou muito a desejar para o trabalhador e cidadão comum, mantendo a essência do poder latifundiário, industrial e militar em seu texto. Pois, segundo o próprio Lula, não basta uma democratização social onde se ausenta uma democratização do capital e da distribuição de renda, onde a diferença econômica e a soberania patronal permanece intacta. Por esse motivo, em nome do povo e da verdadeira democracia, a esquerda votou contra a Constituição e não pelos motivos que se têm veiculado nas diferentes mídias atuais (Facebook, sites, blogs, emails, Whats app, etc). É necessário que tenhamos esse discernimento para diferir o PT de hoje da esquerda histórica, o PT de hoje do PT de ontem, a direita da esquerda, sob o risco de, ao direcionarmos nossos votos e nossas críticas contra o PT (e, portanto, contra uma esquerda "endireitada"), o fazermos contra toda a ideologia de esquerda e fortalecermos os preceitos neoliberais do capital que, por princípio, não têm condições mínimas de, verdadeiramente, reduzirem diferenças sociais e econômicas, a não ser em seus discursos esvaziados de sentido e coerência, pois é da diferença, da injustiça social e do individualismo que o Capitalismo Neoliberal retira o alimento para sua existência, digam o que disserem seus defensores!

Muito poderia ser dito, ainda, sobre o posicionamento do PT acerca da eleição de Tancredo, que postergaria o debate sobre as Diretas Já tão desejado pelo povo brasileiro, da "coalizão" proposta por Itamar, que foi mero artifício da direita para impor seus ideais, e do calote da dívida externa, que poderia dar ao Brasil a liberdade e o fôlego necessários para negociá-la segundo seus próprios termos e sem as pressões e imposições dos EUA, entre diversos outros disparates expostos em sites como http://www.averdadesufocada.com/index.php/voc-sabia-especial-89/3934-0710-um-resgate-da-histria-do-pt. Mas vou deixar isso para os que, motivados pelo texto acima, procurarão refletir sobre o conteúdo falacioso de tais acusações, as quais são feitas de forma anacrônica e fora do contexto em que se deram as decisões políticas, desconsiderando motivações e inúmeras variáveis que não se reduzem ao que em tais críticas está, muito superficialmente, exposto. Variáveis que, entre outras coisas, representavam o compromisso do PT com o trabalhador e com o povo brasileiro e que, talvez, esteja ausente dos interesses atuais desse partido que já foi, para mim, um forte referencial político, mas que, hoje, não mais me representa.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Esquerda x Direita: um debate sem a necessária profundidade teórica





Walner Mamede

 

 Como bem coloca um amigo, tal afirmação (encabeçada no título e expressa na ilustração acima) precisa ser inserida no contexto do debate entre pensadores de ambos os lados, não entre simpatizantes vazios de conteúdo e, igualmente, esbravejadores verborrágicos vociferantes, independentemente do lado que estejam. Nesse contexto, dando o exemplo e a munição a seus simpatizantes, os argumentos da direita tendem a se mirar por um referencial raso, propagandístico, apoiado nos valores reacionários do capital, sem a profundidade teórica necessária e sem o compromisso social indispensável à superação das mazelas no Brasil. E, aos antipetistas de plantão, isso NÃO SE CONFUNDE com uma defesa do PT, que se distanciou há muito dos princípios esquerdistas basilares, sendo aos poucos cooptado pela direita, razão de seu fracasso e de sua perda de legitimidade. Infelizmente, graças à pouca profundidade teórica dos simpatizantes, as correntes subterrâneas que produziram tal fracasso não são percebidas e eles se deixam levar pela direita, que se vale do fiasco petista para atacar toda a ideologia da esquerda em frases como "aí, ó o que a esquerda tem pra oferecer...o PT...olha a m&$#@ que eles fazem...a esquerda está destruindo o Brasil..." e como solução apontam a si próprios, os verdadeiros responsáveis históricos pelas mazelas!!! É uma grande piada de mau gosto!!!

As afirmações de que os ideais socialistas da esquerda são um grande fracasso, apontando Cuba e URSS como exemplos, não dão conta do intento. John Dewey, eminente filósofo da direita norte americana, de inícios do seculo XX, que se debruçava sobre temas como educação e democracia, era enfático ao afirmar q o ideal de democracia jamais havia se concretizado de fato e que os regimes democráticos que conhecíamos eram mero arremedo da ideia de democracia. Curioso é que nunca vimos essas mesmas pessoas, que desprezam a teoria em nome de um pragmatismo capenga, ao negarem o Socialismo, negando a democracia a partir de seu fracasso fora do plano da ideias. Elas mesmas nunca se furtam a tentar superar as limitações concretas do regime democrático em busca dos seus pressupostos teóricos. Isso se dá, simplesmente, porque acreditam que a democracia é o melhor regime (e não estou, aqui, dizendo que é). O que quero dizer é: o caso concreto nunca é suficiente para se negar ou se afirmar definitivamente um ideal ou uma teoria, serve apenas para que a coloquemos em suspense (epoké) ou a aceitemos com parcimônia. Esse é um princípio da razão e deve ser colocado em pratica, inclusive, ao discutirmos os ideais da esquerda. Poder-se-ia alegar o mesmo sobre os ideais da direita, não fossem esses tão polissêmicos, dado que instigam o individualismo, e contrários ao bem coletivo (claro, se o que se almeja é o bem coletivo!), dado que pregam, no extremo, a anulação do Estado, instância maior garantidora do bem comum, a despeito da ausência de lucro.

A ideia de que quanto menos o Estado se meter, melhor para o país e para o povo é um equívoco se tratada de forma universal e anacrônica. O contexto, no qual os ícones desse modelo político-econômico se constituíram (nomeadamente, o G8), era bem outro e já mostrou indícios de grande fragilidade quando bancos norte-americanos necessitaram recorrer ao Estado para não irem à bancarrota e levarem com eles metade do mundo. Outro indicador da falência desse modelo é a grande necessidade de cooperação internacional exigida por um mundo de economia globalizada e com necessidades de autossustentabilidade, no qual o percurso depredatório e imperialista não figura mais como alternativa viável. Para países como o Brasil, que sempre estiveram à sombra do imperialismo norte-americano, de forma mais direta, e dos demais ditos de primeiro mundo, de forma menos direta, a solução não é copiar o modelo político-econômico do pós-guerra, filosoficamente, comprometido com os ideais neoliberais de enxugamento radical do Estado, com sua omissão, especialmente, em questões econômicas. O contexto atual não permite isso e seria a reprodução irrefletida de algo que o Brasil sempre fez e que sempre o impediu de construir sua autonomia: copiar e importar modelos alienígenas ao seu contexto.

Precisamos ter em mente alguns pressupostos de constituição do Estado. Toda a atividade econômica que exercemos e dizemos, com orgulho, pertencerem ao campo privado, foi no passado, em alguma medida, competência do Estado. As exercemos por pura delegação estatal, por uma desestatização gradual e histórica dessas funções, em nome da eficiência (uma das formas de se fazer isso é a privatização). Mas para o alcance de uma eficiência de fato e não apenas hipotética, a toda conduta de desestatização deve corresponder igual conduta de controle, por meio de instrumentos normativos, legais e administrativos (planejamento, monitoramento, avaliações, premiações, punições, repressões...) que garantam o bem comum em detrimento da benesse a grupos ou indivíduos: a lógica da desestatização é, portanto, o bem comum, o Estado se afasta, mas não se omite! Mas, para isso, o Estado precisa ser forte em seus instrumentos de controle e possuir o apoio popular que lhe garanta legitimidade em suas decisões. Uma coisa que o Estado brasileiro nunca foi é "forte" e "legítimo" (por diversos motivos, que vão desde o modelo colonizatório, até o perfil político atual: veja-se "Por que não há sentimento de legitimidade da representação política no Brasil?" em http://walnermamede.blogspot.com.br/2015_01_01_archive.html) e, além disso, seus instrumentos de controle sempre foram e são medíocres e frágeis, sequer a cultura do planejamento e avaliação fazem parte da conduta sistemática das nossas instituições brasileiras. Assim, como querer delegar funções do Estado, sem condições de cobrar por elas?

Nesse cenário, a grande massa de trabalhadores é que paga o pato, sem a tutela estatal. Apesar das Agências de Controle criadas na era FHC, elas restaram falidas quanto a tais objetivos e nada controlam de fato, perdendo sua autonomia administrativa às custas do jogo político, o que comprometeu o equilíbrio de forças no projeto privatista psdbista, mas não os dissuadiu de continuarem tentando (veja-se o privilégio dado às faculdades privadas em toda a década de 90 e a atrocidade que nosso querido (des)Governador está implementando no SUS e na Educação de Goiás, por meio de suas privatizações descontroladas!). Privatizações dessa natureza nada têm a ver com aquelas que ocorreram nos EUA, as condições materiais, objetivas, políticas e ideológicas são outras. Contudo, as diferenças são deixadas de lado em detrimento das (parcas e insustentáveis) semelhanças, produzindo um aparente futuro sucesso social de tais medidas, quando, na verdade, está-se privilegiando apenas a concentração de rendas.

Nesse ponto, sempre surge a afirmação "o Estado deve se ocupar das questões que lhes são próprias, como Saúde, Educação e Segurança" (algo, inclusive, desprezado pelas práticas privatistas, que se valem das OS's para gerenciar escolas públicas e redes de hospitais do SUS). Enche-se o peito para vociferar tal enunciado, com ares de quem tem a solução dos problemas brasileiros, ali, na ponta língua! Mas, aí, eu pergunto: você consegue definir cada um desses domínios?; "saúde" na concepção estrita ou ampliada?; de qual "segurança" estamos falando: do carro que não deve ser roubado ou ter seu eixo quebrado por buracos na rua, da segurança alimentar, da segurança intelectual, da segurança jurídica, da segurança do mercado, do consumidor, do empresário?; e a "educação", sobre qual de seus aspectos o Estado deve intervir?; o Estado deve suspender o direito de existência das escolas privadas?. E por aí vão os questionamentos possíveis que demonstram a irredutibilidade do Estado e do debate a essas três dimensões, aparentemente, simples e, equivocadamente, isoladas de um contexto mais geral. Por isso, entre inúmeras outras questões, é que, apesar do PT (ao qual não faço defesa), ainda milito por pressupostos de uma sociedade socialista e de esquerda e não consigo vislumbrar na direita uma solução para os problemas que assolam o mundo atual.

 


domingo, 15 de março de 2015

"Fora Dilma!"...Hãã...mas por que mesmo?!

Walner Mamede

[Leiam na íntegra, antes de qualquer crítica, sob o risco de o texto ser mal interpretado]

As manifestações de hoje (15/03) são quase uma repetição do que ocorreu com os 'Caras Pintadas' em inícios dos anos 90. À época, o povo (uma maioria de estudantes) foi às ruas pedir o impeachment do Collor. Contudo, tudo não passou de um teatro arquitetado por grupos da elite econômica, com o apoio de grupos políticos interessados na derrocada do então presidente. Não que ele não merecesse, mas o fato é que o movimento popular, por si, pouco teve a ver com o processo, seus integrantes foram mera massa de manobra, atores coadjuvantes, pois um impeachment depende de denúncia junto à Câmara dos Deputados (o que qualquer cidadão pode fazer) e de apoio de dois terços do Senado, frente a um flagrante ato criminoso ou inconstitucional do governante. Isso já estava decidido em gabinete à época, mas era necessária uma legitimação social para que o Congresso se visse empoderado e tomasse uma decisão que, a rigor, deveria ser tomada à revelia do apoio popular declarado, já que se tratava do bem comum. Em casos assim, tipificado o ilícito ou inconstitucional, uma intervenção do Congresso deveria ocorrer, mesmo que à revelia do povo, que muitas vezes não possui as informações necessárias para julgar. Mas aí surgem alguns problemas: a baixa representatividade política de nossos eleitos (a esse respeito veja http://walnermamede.blogspot.com.br/2015/01/por-que-nao-ha-sentimento-de.html), sua ética questionável e sua tendência a se mover com vistas em um novo mandato, ainda que isso signifique não agir em nome do bem comum. Nesse cenário, é mais que compreensível (mas não justificável) que a superação da inércia política apenas se dê à custa de legitimação popular e, para se conseguir isso, há uma corrida aos mais pomposos, incongruentes e manipuladores discursos que possam haver. A participação popular à época não foi um exercício da democracia, como parece a uma primeira vista ao senso comum, mas, justamente, um reflexo de sua ausência, caracterizada pela ilegitimidade política de nossos eleitos, os quais necessitam, a todo momento, reafirmar sua condição e representatividade 'a posteriori' das eleições, já que saem do palanque para o Congresso à custa de discursos eleitoreiros e populistas que são incapazes de constituir uma base eleitoral consistente, comprometida com o bem comum e com as decisões políticas de seus escolhidos nas urnas. Pra isso serviu o "Movimento dos Caras Pintadas", um termômetro para que nossos representantes políticos pudessem se garantir de que receberiam votos para uma próxima eleição. Se o apoio popular não tivesse ocorrido, ainda que o ilícito e o inconstitucional nas ações de Collor tivessem sido tipificados, eles se manteriam inertes e coniventes. Entretanto, sabemos que a superação na inércia não se deu em nome do bem comum, como é praxe no Brasil, esse foi apenas o discurso conveniente para legitimar interesses privados à custa do povo. O que ocorre agora possui algumas semelhanças. Não são os interesses com o bem comum que motivam o movimento "Fora Dilma". Qualquer um com um mínimo de conhecimento político e histórico percebe isso (espero!). Os interesses privados estão (e sempre estiveram) à frente. Um grupo político interessado no poder e se sentindo prejudicado em suas próprias negociatas articularam todo o movimento e o povo, mais uma vez, se apresenta como massa de manobra, gado, ator coadjuvante no processo sem, sequer, perceber que o discurso de impeachment é infundado, pois, diferentemente de Collor, não há ilícito ou inconstitucionalidade nos atos de Dilma, por mais que sua administração esteja sendo um desastre e que a corrupção esteja "vazando pelo ladrão"! Não faço sua defesa e muito menos do PT. Apenas evoco um pouco de clareza e conhecimento de causa dos muitos amigos que têm propalado a ideia de impeachment. O movimento pode ser válido por outros motivos, tais como, expressão de insatisfação, pressão política para mudança de rumos, enrijecimento das investigações e punição de corruptos, retomada dos princípios basilares que fundaram o PT ou mesmo substituição da política de esquerda por políticas de direita, como querem alguns (e nesse saco existe farinha dos dois tipos, brigando por coisas diferentes a partir de um mesmo discurso, sem se dar conta! kkk). O problema com movimentos como esse é que, ao contrário do que ouvi recentemente, ele não possibilita a conscientização política em longo prazo, pois as causas e interesses em jogo não estão, propositadamente, claros e as pessoas apenas seguem a onda, ainda que se auto-declarem conscientes do que fazem. Se se deixam ser manipuladas aqui e agora, não há razão nenhuma para eu acreditar que não o serão no futuro, por ideologias diversas ou confusas implementadas por grupos advogando em causa própria e tendo o povo como "bucha de canhão". A mera participação nas ruas, empunhando bandeiras em momentos pontuais não faz do indivíduo um ativista político, mas uma ferramenta do sistema para sua reprodução, ainda que crie a ilusão da revolução. A verdadeira revolução se faz, sim, com a ação, mas, sobretudo, com conhecimento capaz de qualificar a ação e lhe dotar de verdadeiro sentido político (e aqui faço menção ao sentido pré-socrático de que trata Hannah Arendt). Consequências toda ação traz, mas serão elas as consequências que ensejamos quando sequer temos clareza sobre os princípios que regem nossos atos e os limites de seu alcance?! Tenho comigo que não e de nada adianta contar com a contingência dos atos, pois isso apenas cria um sentimento de civismo e de dever cumprido que nada resultam senão em uma falsa revolução e numa reafirmação do estado atual das coisas, ainda que travestidas com indumentária reformista.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Por que não há sentimento de legitimidade da representação política no Brasil?



Walner Mamede


Pegando de empréstimo os insights de Hannah Arendt para minhas próprias reflexões, inicio este texto esclarecendo que ele não possui o rigor metodológico exigido de um artigo científico, mas está comprometido com a seriedade acadêmica necessária à escrita de um ensaio. Assim, nas linhas que se seguem, procuraremos expressar nosso pensamento de forma sucinta, mas não reducionista, clara, mas não leviana, para que o leitor menos acostumado com os conceitos arendtianos seja capaz de compreender e interpelar nossas afirmações, sem que sejam consideradas algo esotéricas. Com essa pretensão em mente, sigamos adiante, então.

Duas das características do Totalitarismo são o isolamento e a solidão. O primeiro, como em qualquer tirania, decorre da e promove a apatia ou repulsa política dos indivíduos com a, consequente, destruição da vida pública. A segunda é decorrente e promotora da ausência de um sentimento de pertença do indivíduo em relação ao mundo, o que impede seu enraizamento e compromete suas relações sociais ao se constituir uma condição de medo permanente contra um inimigo imaginário materializado em qualquer um como potencial traidor ou delator, destruindo a vida privada. Nos dois casos, o sentimento culminante é a falta de esperança em si, no outro, nas instituições e no próprio Estado, o que nos coloca à deriva, à procura de um porto seguro no qual atracar. Em um primeiro momento, aproveitando-se dessa situação prévia e levando-a ao extremo em um segundo momento, os regimes totalitários constituem uma comunalidade entre os integrantes de um grupo social amorfo sem-causa, sem-esperança, sem-raiz, sem-perspectiva e um objetivo comum a ser alcançado em nome ou por causa da comunalidade constituída. Com essa estrutura, o Nazismo instituiu, como comunalidade, o fato de esse grupo de cidadãos alemães pertencerem à raça branca (ariana) e, como objetivo, a ascensão dos pertencentes a essa raça a um status superior em todos os campos: econômico, político, social e moral. Para isso, as raças inferiores deveriam ser expulsas do país, pois estavam trazendo miséria aos verdadeiros herdeiros da Alemanha. Aproveitando-se do ódio latente cristão ancestral aos judeus e ao fato de estes, em grande parte, não terem se integrado à sociedade como cidadãos, permanecendo como párias nos países nos quais se radicaram (à exceção dos parvenus, judeus, voluntariamente, integrados ao sistema por suas qualidades intelectuais, financeiras ou estratégicas), foram eles os eleitos para focalizarem os esforços dos partidários do regime, em nome do objetivo comum traçado: a reconquista da glória ariana. Os judeus tinham contra si, ainda, o discurso de que, não sendo cidadãos e estando espalhados dentro de vários países, mas com fortes vínculos culturais, que os unia como uma nação supraestatal, não poderiam possuir compromisso patriótico com o país em que estavam e, portanto, seriam um risco a projetos nacionalistas, por seu potencial conspiratório e revolucionário. Tal situação, em casos isolados de pequenas proporções, já havia dado indícios daquilo que viria a ocorrer. A França, assim, antecipou em décadas o que se viu, massivamente, na Alemanha, quando permitiu uma campanha contra um judeu assimilado militar, acusado, injustamente, de traição (Caso Dreyfus), em finais do século XIX e início do século XX.

A degradação da situação econômica e social e da autoestima dos cidadãos alemães, bem como a presença latente do isolamento e da solidão sociais, após a Primeira Guerra, constituíram o contexto ideal para que o Totalitarismo se implantasse em sua vertente nazista. Assim, um discurso irracional de ódio contra os judeus (antissemitismo) se espalhou e cidadãos alemães que partilhavam um mesmo sentimento de fracasso, humilhação e desesperança individual e coletiva, antes, divididos por suas diferenças de classe, viram, nesse discurso, na recém criada categoria “ariana” e nas promessas de ascensão propagadas pelo sistema, algo para se agarrarem como uma tábua de salvação, um porto seguro, ainda que à custa do outro (judeus). O efeito perverso disso é que, instituído o regime, todas as mazelas, que levaram os cidadãos a aderirem a ele, foram fomentadas como parte de uma estratégia que criou as condições de possibilidade de sua permanência e o inimigo, antes comum, passa a ser, potencialmente, qualquer um, ampliando a sensação de isolamento e solidão e tornando cada cidadão um fiscal do regime, pronto a delatar o mais íntimo compatriota por subversão, em nome do medo ou de vantagens. As relações se esfacelam, a vida privada é destruída junto com a pública, os indivíduos se tornam autômatos programados para servir ao sistema e nele se diluem, perdem sua individualidade, assim como a noção de coletividade, sua humanidade é destroçada e vivem como algo menos que um animal, incapazes de exercer sua liberdade por meio do pensamento. Pensar livremente é algo que vai além da simples dedução, é processo criativo impossibilitado pela atividade dedutiva, já que, nesta, a premissa contém, já implícita, a consequência, tal como em “Todo homem é mortal”. Dessa premissa não é possível deduzir que exista algum ser humano que não seja mortal e a conclusão é óbvia, não havendo espaço para a criatividade. Estabelecida uma premissa falaciosa e sendo esta, irrefletidamente, aceita pelas massas, a conclusão dedutiva a ser alcançada será, necessariamente, aquela prevista por quem produziu a premissa e, portanto, controlável, o que lhe dá poder sobre as massas.

Discursos uníssonos, que suprimem a indução em nome da dedução, oprimem qualquer outra possibilidade discursiva e negligenciam o diálogo racional, especialmente os discursos de ódio, cegantes por natureza, são uma poderosa arma do Totalitarismo. A opressão pode ocorrer tanto por meio da violência, quanto da disseminação ideológica de ideias falaciosas discursivas (premissas em uma dedução) que ocupam o lugar das ideias legítimas dialogadas, numa espécie de antagonismo competitivo, este vitorioso em mentes ávidas por preencher o vazio deixado por seu desenraizamento de qualquer causa, descompromisso com qualquer tradição e descrença com a possibilidade de qualquer construção dialógica, esta concebida como infrutífera e ineficiente. A conduta totalitária pode ser identificada nas mais diversas áreas, estando além de e sobrevivendo à sua vertente como regime político tirânico, podendo se cristalizar em situações específicas, mesmo dentro de um sistema democrático, tal como a definição de um padrão de beleza, de um desejo de consumo, de um modelo educacional, de um paradigma científico ou seja lá qual for o pensamento hegemônico que esteja tentando se impor, discursivamente. Ao debruçarmos nosso olhar sobre as condições brasileiras, percebemos pequenos indícios que nos alertam para a existência dissimulada (como cabe a qualquer “bom” Totalitarismo) de um potencial totalitário nos mais diversos campos, especialmente no político. Dentre tais indícios, podemos destacar a apatia e repulsa popular contra a política, os políticos e o debate público, a clara certeza de que não existe representação política de fato, a ausência de um sentimento de pertença a uma nação, a desilusão com a possibilidade de tutela do Estado e com a tradição, o fortalecimento do individualismo, a superfluidade dos desejos e da conduta e o vazio ideológico. Este é um terreno fértil para a cristalização da ideologia totalitária, a partir de elementos latentes, que dormitam nos subterrâneos da vida social, aguardam uma janela de confluência favorável e que já têm demonstrado seus frutos, como pudemos ver durante as eleições de 2014. Discursos de ódio semelhantes, mas de sentidos opostos, puderam ser encontrados, assim, não se tratando o presente texto da defesa de uma posição político-partidária, nos valeremos do elemento mais evidente e permanente para ilustrarmos nosso argumento, o ataque à esquerda, já que ela saiu vitoriosa nas eleições.

Um discurso de ódio nascente contra um tradicional partido representante da esquerda em nosso país, e já no poder há 12 anos, se tornou um discurso totalitário contra a própria ideologia de esquerda, em uma indevida transferência do ódio, à revelia do diálogo racional entre as partes que defendiam posições opostas. Assim, a premissa “comunista come criancinha”, nascida durante a Revolução Russa e tão, fortemente, utilizada contra o Socialismo (não apenas contra o Comunismo, em uma conveniente confusão conceitual) durante o período da Cortina de Ferro, que separou o mundo em dois pólos até o início da década de 90 do último século e imprimiu seus reflexos na redemocratização do nosso país na década de 80, retornou às bocas brasileiras, mas travestido de diversas formas, tais como: “esquerdista ignora o rombo das contas públicas”, “esquerdista é defensor do aborto”, “esquerdista odeia judeus”, esquerdista festeja a morte de policiais”, “esquerdista coloca a causa acima da ética”, “esquerdista defende a pobreza e o comunismo à custa do PIB”, “esquerdista apoia os campos de concentração cubanos contra gays”, “esquerdista não quer discutir a carga tributária exorbitante do país”, “esquerdista é contra a família e a igreja”, “esquerdista é vingativo, nunca perdoa”, “esquerdista gosta do discurso de vitimização”, “esquerdista faz vista grossa para crimes cometidos pelo partido”, “esquerdista defende o partido, incondicionalmente”, “esquerdista não entende de economia”, “esquerdista onera os cofres públicos com o inchamento do Estado”, “esquerdista gasta todo o dinheiro do povo em assistencialismo”, “esquerdista é contra a meritocracia”, “esquerdista só quer saber de dar cotas pra preguiçoso”, “esquerdista não entende de números, por isso administra mal as contas públicas”, “esquerdista fica cheio de teorias da Sociologia, da Filosofia e da História, defendendo direitos humanos e preguiçosos”, “esquerdista não trabalha e quer mamar no Governo com projetos assistencialistas e altos impostos”, “esquerdista não se preocupa com as empresas, que são responsáveis pela geração de renda e emprego”, “esquerdista é contra os militares, que tentaram salvar o Brasil contra bandidos, nas décadas de 60 e 70”, entre várias outras. Pensamentos do gênero, como premissas em um processo dedutivo, atribuem condutas falaciosas, genericamente, a todos os esquerdistas, em grande parte, tendo por referência a conduta de um único partido (o PT, que já não representa, fielmente, a esquerda) ou transferindo condutas que, via de regra, não são restritas aos defensores do partido ou da esquerda ou, sequer, fazem parte da ideologia esquerdista.

Essa realidade denota mera retórica e ausência de um diálogo capaz de acrescentar algo ao debate, visando simples desqualificação ad hominem para convencimento, sem atenção à presença de um teor ideológico divorciado da concretude dos fatos ou de uma análise mais isenta e vertical e, repito, é uma crítica direcionada aos dois lados da contenda. Nesse contexto, é a propaganda a grande aliada, pois representa um discurso unidirecional, isento de interlocução, principalmente, porque a grande massa de eleitores, à parte do debate político e filosófico sério, não se interessa pela verticalização conceitual e se contenta com a leviandade das afirmações publicitárias enviesadas capazes, mesmo, de condicionar análises empíricas bem intencionadas. Tal contentamento possui suas bases assentadas na busca pela esperança em qualquer lugar que ela possa aparecer, à semelhança de uma conversão religiosa, o que abre caminho para o arrebatamento narcísico conseguido por meio de uma retórica que reflete a imagem do próprio eleitor e o atrai para dentro do lago, afogando-o, na esteira das melhores técnicas de marketing. Quando o marketing entra em cena, a política se afasta, pois o compromisso com o bem comum cede lugar para o compromisso com a própria imagem, a preocupação com a aceitação pelas massas e um discurso que busca atender o maior número possível de expectativas. Assim ocorrendo, o político deixa de se orientar pelas necessidades do povo e pelos pressupostos teóricos que sustentam sua crença sobre o que deva ser um modelo justo de sociedade, enveredando pelos caminhos da autopromoção e da propaganda. Conquistada a massa pelo recurso propagandístico, o político acende ao cargo e sua conduta não condiz com o discurso que o elegeu, por sua inconsistência teórica e pelos impedimentos práticos decorrentes de sua fragmentação ideológica e das condições concretas para sua materialização. Tal situação cria uma ruptura entre o político e sua base eleitoral, que se sente traída em suas expectativas, comprometendo a percepção da representação possível e retroalimentado o sentimento de abandono, ao qual muitos brasileiros se vêem submetidos, a individualidade na busca de soluções para os problemas vivenciados no cotidiano e o isolamento e a solidão daí decorrentes, com a consequente corrupção, tanto da vida pública, quanto da privada, reafirmando a insatisfação pessoal e o descompromisso com qualquer causa que possa promover um enraizamento social do indivíduo. Esse quadro potencializa o cenário favorável à sua manutenção e ampliação, em um processo de autorreprodução, um círculo vicioso.

Para finalizar, precisamos estar atentos à pouca lucidez do “debate” político atual, no qual partidos assumem compromissos públicos alheios à ideologia que fundamentou sua criação e sustenta sua existência. Essa não é uma postura honesta, sincera, pois, a despeito do que muitos, ingenuamente, acreditam, o político não é autônomo em relação ao partido a que está ligado. Ele carrega consigo uma enorme herança ideológica, ainda que insuspeita do público em geral, e uma gama de compromissos assumidos nos gabinetes e mesas de negociação do partido, tendo o político participado ou não, diretamente, de tais articulações. Um homem não governa sozinho, ele depende de seus coligados para isso, de negociações em uma rede de atores que extrapola em muito o alcance de seus braços. Nessa rede, acordos são feitos e desfeitos a todo momento e objetivos, antes claros e determinados, se tornam obscuros e tortuosos em nome de objetivos maiores e em nome de objetivos adversários, numa constante “troca de gentilezas” que caracteriza a governabilidade de um país, estado ou município. Assim, compromissos públicos que se mostram alheios a tais condições, são mero fruto do marketing pessoal, da tentativa de agradar o maior número possível de eleitores, com um discurso convincente, massificado e de viés totalitário, já que “discurso” e não “diálogo”. A atitude, meramente, discursiva oblitera qualquer possibilidade de pensamento livre ao inculcar premissas e fomentar a dedução daquilo que é “óbvio”, tendo a propaganda por ferramenta de massificação e emburrecimento. A ‘arte da política’ cede espaço para o ‘mercado da política’, cujo produto é a ilegitimidade da representação democrática, pois apenas uns poucos seduzidos poderão dizer “esse atendeu minhas expectativas!”.