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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Por que não há sentimento de legitimidade da representação política no Brasil?



Walner Mamede


Pegando de empréstimo os insights de Hannah Arendt para minhas próprias reflexões, inicio este texto esclarecendo que ele não possui o rigor metodológico exigido de um artigo científico, mas está comprometido com a seriedade acadêmica necessária à escrita de um ensaio. Assim, nas linhas que se seguem, procuraremos expressar nosso pensamento de forma sucinta, mas não reducionista, clara, mas não leviana, para que o leitor menos acostumado com os conceitos arendtianos seja capaz de compreender e interpelar nossas afirmações, sem que sejam consideradas algo esotéricas. Com essa pretensão em mente, sigamos adiante, então.

Duas das características do Totalitarismo são o isolamento e a solidão. O primeiro, como em qualquer tirania, decorre da e promove a apatia ou repulsa política dos indivíduos com a, consequente, destruição da vida pública. A segunda é decorrente e promotora da ausência de um sentimento de pertença do indivíduo em relação ao mundo, o que impede seu enraizamento e compromete suas relações sociais ao se constituir uma condição de medo permanente contra um inimigo imaginário materializado em qualquer um como potencial traidor ou delator, destruindo a vida privada. Nos dois casos, o sentimento culminante é a falta de esperança em si, no outro, nas instituições e no próprio Estado, o que nos coloca à deriva, à procura de um porto seguro no qual atracar. Em um primeiro momento, aproveitando-se dessa situação prévia e levando-a ao extremo em um segundo momento, os regimes totalitários constituem uma comunalidade entre os integrantes de um grupo social amorfo sem-causa, sem-esperança, sem-raiz, sem-perspectiva e um objetivo comum a ser alcançado em nome ou por causa da comunalidade constituída. Com essa estrutura, o Nazismo instituiu, como comunalidade, o fato de esse grupo de cidadãos alemães pertencerem à raça branca (ariana) e, como objetivo, a ascensão dos pertencentes a essa raça a um status superior em todos os campos: econômico, político, social e moral. Para isso, as raças inferiores deveriam ser expulsas do país, pois estavam trazendo miséria aos verdadeiros herdeiros da Alemanha. Aproveitando-se do ódio latente cristão ancestral aos judeus e ao fato de estes, em grande parte, não terem se integrado à sociedade como cidadãos, permanecendo como párias nos países nos quais se radicaram (à exceção dos parvenus, judeus, voluntariamente, integrados ao sistema por suas qualidades intelectuais, financeiras ou estratégicas), foram eles os eleitos para focalizarem os esforços dos partidários do regime, em nome do objetivo comum traçado: a reconquista da glória ariana. Os judeus tinham contra si, ainda, o discurso de que, não sendo cidadãos e estando espalhados dentro de vários países, mas com fortes vínculos culturais, que os unia como uma nação supraestatal, não poderiam possuir compromisso patriótico com o país em que estavam e, portanto, seriam um risco a projetos nacionalistas, por seu potencial conspiratório e revolucionário. Tal situação, em casos isolados de pequenas proporções, já havia dado indícios daquilo que viria a ocorrer. A França, assim, antecipou em décadas o que se viu, massivamente, na Alemanha, quando permitiu uma campanha contra um judeu assimilado militar, acusado, injustamente, de traição (Caso Dreyfus), em finais do século XIX e início do século XX.

A degradação da situação econômica e social e da autoestima dos cidadãos alemães, bem como a presença latente do isolamento e da solidão sociais, após a Primeira Guerra, constituíram o contexto ideal para que o Totalitarismo se implantasse em sua vertente nazista. Assim, um discurso irracional de ódio contra os judeus (antissemitismo) se espalhou e cidadãos alemães que partilhavam um mesmo sentimento de fracasso, humilhação e desesperança individual e coletiva, antes, divididos por suas diferenças de classe, viram, nesse discurso, na recém criada categoria “ariana” e nas promessas de ascensão propagadas pelo sistema, algo para se agarrarem como uma tábua de salvação, um porto seguro, ainda que à custa do outro (judeus). O efeito perverso disso é que, instituído o regime, todas as mazelas, que levaram os cidadãos a aderirem a ele, foram fomentadas como parte de uma estratégia que criou as condições de possibilidade de sua permanência e o inimigo, antes comum, passa a ser, potencialmente, qualquer um, ampliando a sensação de isolamento e solidão e tornando cada cidadão um fiscal do regime, pronto a delatar o mais íntimo compatriota por subversão, em nome do medo ou de vantagens. As relações se esfacelam, a vida privada é destruída junto com a pública, os indivíduos se tornam autômatos programados para servir ao sistema e nele se diluem, perdem sua individualidade, assim como a noção de coletividade, sua humanidade é destroçada e vivem como algo menos que um animal, incapazes de exercer sua liberdade por meio do pensamento. Pensar livremente é algo que vai além da simples dedução, é processo criativo impossibilitado pela atividade dedutiva, já que, nesta, a premissa contém, já implícita, a consequência, tal como em “Todo homem é mortal”. Dessa premissa não é possível deduzir que exista algum ser humano que não seja mortal e a conclusão é óbvia, não havendo espaço para a criatividade. Estabelecida uma premissa falaciosa e sendo esta, irrefletidamente, aceita pelas massas, a conclusão dedutiva a ser alcançada será, necessariamente, aquela prevista por quem produziu a premissa e, portanto, controlável, o que lhe dá poder sobre as massas.

Discursos uníssonos, que suprimem a indução em nome da dedução, oprimem qualquer outra possibilidade discursiva e negligenciam o diálogo racional, especialmente os discursos de ódio, cegantes por natureza, são uma poderosa arma do Totalitarismo. A opressão pode ocorrer tanto por meio da violência, quanto da disseminação ideológica de ideias falaciosas discursivas (premissas em uma dedução) que ocupam o lugar das ideias legítimas dialogadas, numa espécie de antagonismo competitivo, este vitorioso em mentes ávidas por preencher o vazio deixado por seu desenraizamento de qualquer causa, descompromisso com qualquer tradição e descrença com a possibilidade de qualquer construção dialógica, esta concebida como infrutífera e ineficiente. A conduta totalitária pode ser identificada nas mais diversas áreas, estando além de e sobrevivendo à sua vertente como regime político tirânico, podendo se cristalizar em situações específicas, mesmo dentro de um sistema democrático, tal como a definição de um padrão de beleza, de um desejo de consumo, de um modelo educacional, de um paradigma científico ou seja lá qual for o pensamento hegemônico que esteja tentando se impor, discursivamente. Ao debruçarmos nosso olhar sobre as condições brasileiras, percebemos pequenos indícios que nos alertam para a existência dissimulada (como cabe a qualquer “bom” Totalitarismo) de um potencial totalitário nos mais diversos campos, especialmente no político. Dentre tais indícios, podemos destacar a apatia e repulsa popular contra a política, os políticos e o debate público, a clara certeza de que não existe representação política de fato, a ausência de um sentimento de pertença a uma nação, a desilusão com a possibilidade de tutela do Estado e com a tradição, o fortalecimento do individualismo, a superfluidade dos desejos e da conduta e o vazio ideológico. Este é um terreno fértil para a cristalização da ideologia totalitária, a partir de elementos latentes, que dormitam nos subterrâneos da vida social, aguardam uma janela de confluência favorável e que já têm demonstrado seus frutos, como pudemos ver durante as eleições de 2014. Discursos de ódio semelhantes, mas de sentidos opostos, puderam ser encontrados, assim, não se tratando o presente texto da defesa de uma posição político-partidária, nos valeremos do elemento mais evidente e permanente para ilustrarmos nosso argumento, o ataque à esquerda, já que ela saiu vitoriosa nas eleições.

Um discurso de ódio nascente contra um tradicional partido representante da esquerda em nosso país, e já no poder há 12 anos, se tornou um discurso totalitário contra a própria ideologia de esquerda, em uma indevida transferência do ódio, à revelia do diálogo racional entre as partes que defendiam posições opostas. Assim, a premissa “comunista come criancinha”, nascida durante a Revolução Russa e tão, fortemente, utilizada contra o Socialismo (não apenas contra o Comunismo, em uma conveniente confusão conceitual) durante o período da Cortina de Ferro, que separou o mundo em dois pólos até o início da década de 90 do último século e imprimiu seus reflexos na redemocratização do nosso país na década de 80, retornou às bocas brasileiras, mas travestido de diversas formas, tais como: “esquerdista ignora o rombo das contas públicas”, “esquerdista é defensor do aborto”, “esquerdista odeia judeus”, esquerdista festeja a morte de policiais”, “esquerdista coloca a causa acima da ética”, “esquerdista defende a pobreza e o comunismo à custa do PIB”, “esquerdista apoia os campos de concentração cubanos contra gays”, “esquerdista não quer discutir a carga tributária exorbitante do país”, “esquerdista é contra a família e a igreja”, “esquerdista é vingativo, nunca perdoa”, “esquerdista gosta do discurso de vitimização”, “esquerdista faz vista grossa para crimes cometidos pelo partido”, “esquerdista defende o partido, incondicionalmente”, “esquerdista não entende de economia”, “esquerdista onera os cofres públicos com o inchamento do Estado”, “esquerdista gasta todo o dinheiro do povo em assistencialismo”, “esquerdista é contra a meritocracia”, “esquerdista só quer saber de dar cotas pra preguiçoso”, “esquerdista não entende de números, por isso administra mal as contas públicas”, “esquerdista fica cheio de teorias da Sociologia, da Filosofia e da História, defendendo direitos humanos e preguiçosos”, “esquerdista não trabalha e quer mamar no Governo com projetos assistencialistas e altos impostos”, “esquerdista não se preocupa com as empresas, que são responsáveis pela geração de renda e emprego”, “esquerdista é contra os militares, que tentaram salvar o Brasil contra bandidos, nas décadas de 60 e 70”, entre várias outras. Pensamentos do gênero, como premissas em um processo dedutivo, atribuem condutas falaciosas, genericamente, a todos os esquerdistas, em grande parte, tendo por referência a conduta de um único partido (o PT, que já não representa, fielmente, a esquerda) ou transferindo condutas que, via de regra, não são restritas aos defensores do partido ou da esquerda ou, sequer, fazem parte da ideologia esquerdista.

Essa realidade denota mera retórica e ausência de um diálogo capaz de acrescentar algo ao debate, visando simples desqualificação ad hominem para convencimento, sem atenção à presença de um teor ideológico divorciado da concretude dos fatos ou de uma análise mais isenta e vertical e, repito, é uma crítica direcionada aos dois lados da contenda. Nesse contexto, é a propaganda a grande aliada, pois representa um discurso unidirecional, isento de interlocução, principalmente, porque a grande massa de eleitores, à parte do debate político e filosófico sério, não se interessa pela verticalização conceitual e se contenta com a leviandade das afirmações publicitárias enviesadas capazes, mesmo, de condicionar análises empíricas bem intencionadas. Tal contentamento possui suas bases assentadas na busca pela esperança em qualquer lugar que ela possa aparecer, à semelhança de uma conversão religiosa, o que abre caminho para o arrebatamento narcísico conseguido por meio de uma retórica que reflete a imagem do próprio eleitor e o atrai para dentro do lago, afogando-o, na esteira das melhores técnicas de marketing. Quando o marketing entra em cena, a política se afasta, pois o compromisso com o bem comum cede lugar para o compromisso com a própria imagem, a preocupação com a aceitação pelas massas e um discurso que busca atender o maior número possível de expectativas. Assim ocorrendo, o político deixa de se orientar pelas necessidades do povo e pelos pressupostos teóricos que sustentam sua crença sobre o que deva ser um modelo justo de sociedade, enveredando pelos caminhos da autopromoção e da propaganda. Conquistada a massa pelo recurso propagandístico, o político acende ao cargo e sua conduta não condiz com o discurso que o elegeu, por sua inconsistência teórica e pelos impedimentos práticos decorrentes de sua fragmentação ideológica e das condições concretas para sua materialização. Tal situação cria uma ruptura entre o político e sua base eleitoral, que se sente traída em suas expectativas, comprometendo a percepção da representação possível e retroalimentado o sentimento de abandono, ao qual muitos brasileiros se vêem submetidos, a individualidade na busca de soluções para os problemas vivenciados no cotidiano e o isolamento e a solidão daí decorrentes, com a consequente corrupção, tanto da vida pública, quanto da privada, reafirmando a insatisfação pessoal e o descompromisso com qualquer causa que possa promover um enraizamento social do indivíduo. Esse quadro potencializa o cenário favorável à sua manutenção e ampliação, em um processo de autorreprodução, um círculo vicioso.

Para finalizar, precisamos estar atentos à pouca lucidez do “debate” político atual, no qual partidos assumem compromissos públicos alheios à ideologia que fundamentou sua criação e sustenta sua existência. Essa não é uma postura honesta, sincera, pois, a despeito do que muitos, ingenuamente, acreditam, o político não é autônomo em relação ao partido a que está ligado. Ele carrega consigo uma enorme herança ideológica, ainda que insuspeita do público em geral, e uma gama de compromissos assumidos nos gabinetes e mesas de negociação do partido, tendo o político participado ou não, diretamente, de tais articulações. Um homem não governa sozinho, ele depende de seus coligados para isso, de negociações em uma rede de atores que extrapola em muito o alcance de seus braços. Nessa rede, acordos são feitos e desfeitos a todo momento e objetivos, antes claros e determinados, se tornam obscuros e tortuosos em nome de objetivos maiores e em nome de objetivos adversários, numa constante “troca de gentilezas” que caracteriza a governabilidade de um país, estado ou município. Assim, compromissos públicos que se mostram alheios a tais condições, são mero fruto do marketing pessoal, da tentativa de agradar o maior número possível de eleitores, com um discurso convincente, massificado e de viés totalitário, já que “discurso” e não “diálogo”. A atitude, meramente, discursiva oblitera qualquer possibilidade de pensamento livre ao inculcar premissas e fomentar a dedução daquilo que é “óbvio”, tendo a propaganda por ferramenta de massificação e emburrecimento. A ‘arte da política’ cede espaço para o ‘mercado da política’, cujo produto é a ilegitimidade da representação democrática, pois apenas uns poucos seduzidos poderão dizer “esse atendeu minhas expectativas!”.