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segunda-feira, 16 de maio de 2016

O belo, o inútil e a poesia


Por Walner Mamede
O sentimento do sublime frente ao belo não é lógico, ele provém, para Gilles Deleuze, de um acordo discordante entre a imaginação e a razão, uma contradição que produz harmonia na dor. A intuição sensível, que nos põe em experiência com o objeto, nos exige um juízo lógico, que produz conhecimento, ou um juízo estético, que engendra um sentimento de prazer ou dor, nos convoca à vida (vivificação) e cria condições para a contemplação do belo, quando se nos apresenta. Acessar o belo exige retermo-nos no objeto de contemplação e, para tanto, é o ócio inútil a instância da vida humana capaz de permití-lo, não o labor, não o trabalho, pois que estes, como já alertava Hannah Arendt, estão comprometidos com a utilidade, buscando a subsistência do corpo e a conquista de bens, respectivamente. O labor e o trabalho não nos permitem o espaço e o tempo necessários à contemplação e às tarefas, essencialmente, humanas como a arte e a política. Nem tampouco a demora, inestimável ao jogo entre a sensibilidade e o entendimento, é-nos permitida na ausência do ócio, e, assim, a consciência de que a razão dedutiva possui, em si, algo de perverso e nos anestesia diante da vida sequer se manifesta minimamente. Seria Eichmann o eterno fantasma a nos assombrar, nos alertando de que a banalização do mal decorre da negligência com o belo, com o sublime?
Aqui, parece razoável remetermo-nos a Hermeto Paschoal[1], para quem “não se pode...colocar o saber na frente do sentir”. Kant diria que a experiência estética busca preencher o abismo que se instala entre o sujeito e o objeto apresentado à sensação, abismo irremediável pelo instituto do conhecimento. No sentimento estético, os conceitos preservam seu valor intrínseco, mas de forma coadjuvante, permitindo ao juízo operar não-dedutivamente na produção simultânea e explosiva de ideias libertas da necessidade de memorização e entendimento e do compromisso com o útil, o histórico, o moral e o lógico. Nesse sentido, a experiência estética não é prática (bem), nem intelectual (bom), mas subproduto do jogo entre as faculdades da sensibilidade, imaginação e entendimento, que, da contemplação plácida do belo ao movimento do ânimo pelo sublime, materializa uma possibilidade derivada da condição humana, um devir sempre subjetivo, ainda que pareça aderente ao objeto. A vivificação e o prazer trazidos por essa relação não possui condições de se manifestar na presença de regras prévias que a determinem. Em segundas palavras, na ausência da liberdade para se jogar, o abismo entre sujeito e objeto é alimentado e o prazer, o encantamento, o abalo, o espanto, a surpresa, o susto, a alegria, o encontro, o entusiasmo, a comoção, a atração, a repulsa, a embriaguez e a lucidez possíveis se perdem, com eles levando nossa capacidade de sentirmo-nos adaptados ao mundo e de compartilhá-lo. A liberdade, pressuposto da autenticidade, é obscurecida pela utilidade imanente às regras prévias da contemplação objetivada, submetendo o belo à razão e roubando-o à imaginação.
A esse respeito, afirmaria Paulo Leminski[2] sobre o que Francis Bacon denominara “ciência da imaginação”: “A poesia é um inutensílio, a única razão de ser da poesia é que ela faz parte daquelas coisas inúteis da vida que não precisam de justificativa porque elas são a própria razão de ser da vida...Querer que a poesia tenha um ‘por quê’, querer que a poesia esteja à serviço de alguma coisa, é a mesma coisa que querer, por exemplo...que o orgasmo tenha um por que...Acho que a poesia faz parte daquelas coisas que não precisam ter um por que. Para quê ‘por que’?”. E assevera, ainda, Leminski: “As pessoas sem imaginação estão sempre querendo que a arte sirva para alguma coisa...Não enxergam que a arte (a poesia é arte) é a única chance que o homem tem de vivenciar a experiência de um mundo da liberdade, além da necessidade”.
E, por oportuno, à guisa de abertura para novas divagações, remetemo-nos, mais uma vez, a Hermeto Paschoal: “...[na música] o que dá dinheiro é sempre burrice...Não tive e nem vou ter nenhum retorno financeiro com minha obra, mas meu prazer, minha alegria, continua sendo tocar. Por isso, as minhas músicas eu quero mais é que sejam pirateadas. Quero mais é que as pessoas toquem, ouçam, a conheçam. E pra mim, quem reclama da pirataria é quem faz música apenas para vender. Meu valor não são as notas de dinheiro. São as notas musicais...” e, complemento eu, o valor depositado nas notas musicais não é outra coisa senão a liberdade de gozar o belo na inutilidade do ócio, à distância do labor e do trabalho que escravizam nossas almas e limitam nossas mentes.



[1] Hermeto Paschoal, compositor arranjador e multi-instrumentista brasileiro, nascido em 22 de junho de 1936, em Olho d'Água das Flores, Alagoas (https://www.cartacapital.com.br/cultura/na-musica-o-que-da-dinheiro-e-sempre-burrice-diz-hermeto-paschoal/ e https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/4843831).
[2] Paulo Leminski, escritor, poeta, crítico literário, tradutor e professor brasileiro, nascido em Curitiba, 24 de agosto de 1944 e falecido em Curitiba, 7 de junho de 1989 (https://tateios.wordpress.com/2013/09/27/o-que-e-a-poesia-paulo-leminski/).