Navegue entre as páginas

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

RUÍDO NOTURNO, UM MAL DE DIFÍCIL SOLUÇÃO NA CULTURA DO BARULHO


Walner Mamede

É fato conhecido e reconhecido que diversas casas de show, boates ou bares com música ao vivo ou mecânica têm promovido perturbação da paz, do sossego e da saúde e comprometimento do meio ambiente urbano por poluição sonora, pois, apesar das alegações em contrário, não possuem as condições estruturais mínimas para sediar eventos festivos e musicais, conforme estabelecido pelas normas vigentes no Brasil: Classificação CNAE: 823000200X - GI-3, própria para casas de festas, shows e eventos.

A poluição sonora se tipifica, nos casos citados, pelo vazamento de incômodo ruído através das paredes, janelas, orifícios e portas para entrada e saída de clientes. Quando o estabelecimento é um ambiente aberto a situação é, ainda, pior. Além disso, claro, não podemos nos esquecer daquele incômodo produzido pelos carros à porta do estabelecimento, os quais, muitas vezes, estacionam nas portas das residências ou reduzem a velocidade, tendo por ruído seus próprios motores e sons automotivos, arrancando, por vezes, em velocidade, com as famosas cantadas de pneu, e têm seus proprietários embriagados se envolvendo em discussões acaloradas madrugada adentro. Há de se entender que os ruídos provocados por clientes efetivos ou potenciais no exterior do estabelecimento têm pouca probabilidade de serem eficientemente controlados pelos proprietários (o que não se estende à polícia, que deveria ser atuante), mas o mesmo não deveria ocorrer com os ruídos provocados pelo próprio estabelecimento ou em seu interior em decorrência de suas atividades.

Lembro que a legislação é clara ao determinar o grau de incomodidade (Lei 8617/2008 e art. 101 do Plano Diretor de Goiânia), especificando o nível de ruído permitido pelo estabelecimento, e exigir estudo do impacto urbano promovido (Lei 8646/2008 e arts. 94 à 97 do Plano Diretor de Goiânia), prevendo o necessário controle da poluição sonora, conforme art. 14 da Lei Complementar 171 (Plano Diretor de Goiânia), a fim de preservar a paz e a saúde humanas e evitar a degradação do meio ambiente, compatibilizando a preservação deste com o desenvolvimento econômico, social e cultural (Lei Federal 6938/81).

Vale ressaltar, ainda, que a saúde e o bem-estar não são comprometidos apenas pelo volume excessivo do ruído emitido por máquinas, vozes e equipamentos de som, mas também por sua constância ou intermitência, particularmente, se de ocorrência em horários de descanso, independentemente dos decibéis alcançados (ZORZAL, BRUNS e TONIN et al, 2003) [1], o que é coerente com o conceito ampliado de saúde preconizado pelo Sistema Único de Saúde-SUS, no qual a saúde do cidadão não se restringe à ausência de doença e muito menos a aspectos relativos ao corpo biológico, mas se estende a determinantes e condicionantes sociais e sobre os quais o poder público possui obrigação de atuar a fim, inclusive, de preservar a força de trabalho e a produtividade do país. Frequências acústicas incômodas, mesmo aquelas de intensidade média à baixa e ainda que em limite inferior aos decibéis preconizados pela NBR 10151, têm a propriedade de, em médio e longo prazos, insidiosamente, causar níveis preocupantes de estresse, que podem redundar em patologias crônicas físicas ou psíquicas, comprometendo, inclusive, o desempenho social e profissional do indivíduo e, em escala, da própria comunidade. Os níveis, legalmente, determinados visam estabelecer um parâmetro seguro para a fiscalização estatal, mas não prescindem de uma avaliação crítica por parte do poder público em termos de vigilância sanitária, quando este se dispõe a garantir a qualidade de vida de seus cidadãos, como convém a um estado democrático de direito.
Em um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (http://labs.icb.ufmg.br/lpf/2-23.html), foi encontrado que:

A partir do valor médio de 35 dBA, reações vegetativas e no EEG e mudanças na estrutura do sono são verificadas. Enquanto os estágios superficiais aumentam a duração, o tempo total de sono e os estágios profundos, MOR e estágio 4, reduzem bastante. O despertar já pode ser atingido em 44 dBA e 53 dBA de pico respectivamente para ambientes calmos, média de 25 dBA, e barulhentos, 45 dBA. Mas, quando o ruído do fundo está a 65 dBA, os reflexos protetores do ouvido médio parecem funcionar, anulando em parte a audição e introduzindo insegurança pela perda da vigília, mostrado pela reação de maior latência para dormir. Por isto provavelmente a 75 dBA de ruído de fundo a qualidade do sono se recupera parcialmente, mas longe da qualidade de níveis mais silenciosos. A poluição sonora portanto piora significantemente a qualidade absoluta do sono, acarretando pior desempenho físico, mental e psicológico e perda provável da alerta auditiva...

Para Fernando Pimentel Souza, pesquisador responsável pelos estudos, “o ruído de pico desperta mais quando o ruído de fundo é menor, sendo abafado seu efeito quando o ruído de fundo é maior, mas aí já se consolidou prejuízos persistentes na qualidade do sono”. Ainda conforme Souza, em consonância com estudos mais recentes da OMS, o ruído contínuo médio em quartos de dormir não deveria ser maior que 30 dBA, com picos máximos de 45 dBA, a fim de se evitarem os reflexos negativos que acompanham o cidadão para além dos momentos efetivos de sua ocorrência, com o que Negrão (2009)[2] denominou de efeitos extra-auditivos.

A poluição sonora tem reflexos em todo o organismo e não apenas no aparelho auditivo...Alguns dos efeitos psicológicos causados pelo ruído no homem podem ser enumerados da seguinte forma: perda da concentração, perda dos reflexos, irritação permanente, insegurança quanto a eficiência dos atos, embaraço nas conversações, perda da inteligibilidade das palavras e impotência sexual...O ruído pode dificultar o adormecer e causar sérios danos ao longo do período de sono profundo proporcionando o inesperado despertar. Níveis de ruído associados aos simples eventos podem criar distúrbios momentâneos dos padrões naturais do sono, por causar mudanças dos estágios leve e profundo do mesmo. A pessoa pode sentir-se tensa e nervosa devido à ausência do repouso decorrente das horas não dormidas. O problema está relacionado com a descarga de hormônios, provocando o aumento da pressão sangüínea, vaso-constrição, aumento da produção de adrenalina e perda de orientação espacial momentânea (ZORZAL, BRUNS e TONIN et al, 2003; p. 14-15).

Aqui, no caudal do art 30 da Lei 6938/1981, compreenderemos por ‘meio ambiente’ todo o espaço natural ou construído que represente o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, permitindo, abrigando e regendo a vida em todas as suas formas. Ainda sob os auspícios do mesmo artigo, temos que:

I - ...
II - degradação da qualidade ambiental [é] a alteração adversa das características do meio ambiente;
III – poluição [é] a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
c) afetem desfavoravelmente a biota;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;
e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos;

A Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3688/41) é mais incisiva ao abordar o tema, motivando o entendimento de que o ruído sequer precisa estar acima dos limites em decibéis previstos pela NBR 10151 para que a contravenção se tipifique, por ser a perturbação do sossego uma interpretação subjetiva e contextual. O referido Decreto assim tipifica a contravenção:

Art. 42. Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios:
I – com gritaria ou algazarra;
II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda.

É notório o fato de que reclamações diversas são, frequentemente, realizadas por moradores de redondezas achacadas por esse mal, contra estabelecimentos incômodos, junto às agências de controle ambiental e de postura (a Agência Municipal de Meio Ambiente de Goiânia-AMMA é um exemplo concreto), inclusive com extensos abaixo-assinados, sem que se surta qualquer efeito, sob a alegação dos (mau medidos ou dimensionados) decibéis, sendo injustificada e incoerente a concessão de autorização de funcionamento para estabelecimentos ruidosos, sem as condições necessárias e, por vezes, em locais que outros estabelecimentos semelhantes foram embargados pelos mesmos motivos.

Sob o crivo dos princípios aqui evocados, devem estar colocados, também, os ruidos advindos de som automotivo ou residencial, cuja emissão é, igualmente, perturbadora e necessita ser coibida e reduzida a padrões aceitáveis de saúde, demandando as sansões cabíveis aos seus produtores. Não há que se falar aqui, assim como também no caso dos estabelecimentos comerciais, de repressão da cultura ou do direito subjetivo de acesso a ela, pois não existe relação nomológica entre o volume ou recorrência de ruídos e a sobrevivência de determinado elemento cultural, sendo o culto ao barulho e o desrespeito ao sossego e à paz alheios um subproduto da indústria cultural de massa. Talvez possamos, apenas, referir a baixa escolaridade e a classe social à preferência por conteúdo musical de reduzida qualidade poética e filosófica, na qual letras e melodias de fácil digestão se concentram em torno de temas com pouco ou nenhum conteúdo crítico ou reflexivo mais elaborado ou metafórico sobre o mundo. Como nos traz uma pesquisa do IBOPE (http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Documents/tribos_musicais.pdf) sobre tribos musicais, o sertanejo, o pagode, o funk e o gospel dominam absolutos nas preferências das classes C, D e E, sendo as baladas noturnas e a socialização nesses ambientes a tônica na diversão desse público. Contudo, apesar da maior tolerância das classes baixas ao ruído, não podemos afirmar que o volume da música seja fator determinante em sua manutenção como elemento cultural com maior ou menor acessibilidade ou perenidade social, ou que a luta pela redução de ruidos sonoros musicais se configure como uma defesa ou privilégio a este ou àquele gênero musical.

Tendo por referência todo o arcabouço legal e teórico citado, assim como a responsabilidade social de nossos órgãos de controle e sob o conceito ampliado de ‘meio ambiente’ encetado pela Lei 6938/81 e já há muito adotado por diversos estudiosos (HOLZER, 1997)[3], partilho da crença de que nossos representantes políticos devem prezar pela qualidade de vida de seus eleitores, acima do lucro financeiro, e que todo cidadão deve requerer as providências cabíveis, a fim de preservar a paz, o sossego e a saúde dos indivíduos de uma comunidade, sugerindo, para isso, a adoção de dispositivos como a Lei Federal 6514/2008 (evocada, em Goiânia, pelo Decreto Municipal 2149/2008), a fim de estabelecer os procedimentos, as infrações e sanções administrativas para proteção do meio ambiente, considerando infração administrativa ambiental, toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente e que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, no curto, médio e longo prazos.





[1] ZORZAL, Fábio Márcio Bisi; BRUNS, Rafael de; TONIN, Ana Karina et al. Estudo do ruído frente á legislação ambiental municipal da cidade de Curitiba. Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental n. 22; V Feira Internacional de Tecnologias de Saneamento Ambiental, Joinville-14-19 set/2003. In: AIDIS; Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental. Saneamento Ambiental: Etica e Responsabilidade Social. Joinville, ABES, set. 2003. p.1-23.

[2] NEGRÃO, Alexandra Maria Goes. Urbanização e Poluição Sonora: estudo de caso sobre os efeitos extra-auditivos provocados pelo ruído noturno urbano. (Dissertação. Mestrado). Universidade da Amazônia. Programa De Mestrado Em Desenvolvimento E Meio Ambiente Urbano. Belém, 2009. [http://www6.unama.br/mestrado/]

[3] HOLZER, Werther. Uma discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem e lugar, território e meio ambiente. Rev. Território, ano II, n. 3, 1997.

Nenhum comentário:

Postar um comentário