O presente ensaio não realiza uma
apologia acerca de posições contrárias ou favoráveis ao tema proposto. Tampouco é
uma crítica à defesa do direito da mulher ou do homem a uma autonomia sobre seu
próprio corpo. Antes, é um convite à reflexão sobre como tendemos a ser
etnocêntricos e como convocamos a Ciência a nosso favor, em uma narrativa universalizante, quando assim é
conveniente, ainda nos dias de hoje, sem nos darmos conta dos aspectos
subjetivos e políticos que figuram como pano de fundo na determinação de
teorias científicas, nem sempre isentas de interesses ou de interferências de
fatores extracientíficos.
Cirurgias genitais, tanto
masculinas quanto femininas, praticadas em regiões africanas como produto
cultural e religioso têm sido alvo de grandes discussões, na atualidade, e
adentraram o campo de debate sobre direitos humanos, sexismo, feminismo e violência
contra a mulher e seu direito de decidir sobre seu próprio corpo e sexualidade.
Contudo, conforme Shahvisi e Earp (2018), a Rede Consultiva de Políticas
Públicas não-partidária sobre Cirurgias Genitais Femininas na África afirma que
“a grande maioria das sociedades mundiais pode ser descrita como patriarcal e a
maioria não modifica os órgãos genitais de qualquer sexo ou modifica apenas os
genitais dos homens. Não há quase nenhuma sociedade patriarcal com cirurgias
genitais habituais para mulheres apenas" (p.14). Ainda conforme os
autores, a forma como as intervenções cirúrgicas genitais femininas vêm sendo
apresentadas no Ocidente se mostram um tanto estereotipadas e
descontextualizadas de sua raiz cultural. Assim, as mulheres originárias dessas culturas têm sido tratadas
quase sempre como destituídas de capacidade de discernimento e vítimas ingênuas
de um sistema patriarcal que controla sua sexualidade, não dando voz a um
grande e dominante número de mulheres que veem nessa prática um costume a ser
respeitado como construtor da identidade feminina e da ordem social em seus
países.
Na esteira da
descontextualização cultural das análises, desconsideram-se outros elementos
como o fato de que, em alguns grupos sociais, a circuncisão masculina é reconhecida e
realizada, explicitamente, como rito de passagem para ascensão ao status adulto e inclusão social entre os jovens e controle do comportamento sexual
masculino, com um discurso higienista moral que propugna a
diminuição do desejo e do instinto sexual e que visa levar desde a inibição da
masturbação à redução do número de coitos, passando pela busca de não propagação
do HIV e outras doenças. Isso pode ser verificado em países tão distintos
quanto Camarões e EUA, em grupos específicos, ou mesmo em campanhas
internacionais, no Ocidente, favoráveis a essa prática. Além disso, existe uma
aviso subliminar nos ritos de passagem masculinos que incluem a mutilação
peniana (circuncisão, a sub-incisão, raspagem uretral, sangria, pique,
piercings...): os mais velhos passam a mensagem aos noviços de que possuem o
poder de castração em caso de uso inadequado do pênis, exercendo um controle
sobre o comportamento sexual masculino, segundo padrões culturais ou
religiosos. No entanto, as oposições morais dominantes no Ocidente se
apresentam, apenas, contra o mutilação feminina, com o argumento de ser ela um
ato sexista de dominação masculina sobre a sexualidade feminina, enquanto a
circuncisão é vista como aceitável e sem consequências morais, físicas ou
psicológicas. Ainda que motivos sexuais figurem como justificativa para
mutilações genitais tanto femininas quanto masculinas em algumas comunidades,
em outras não são eles os causadores do costume (Shahvisi e Earp, 2018). Tais evidências colocam em
xeque a concepção de repressão sexual feminina por uma sociedade,
eminentemente, machista ao apresentar indícios de que o costume da mutilação
genital nem sempre é sexualmente condicionado e, quando o é, não é orientado
pelo gênero da “vítima” e sim está disseminado nessas comunidades como uma
tentativa de coação comportamental difusa em relação à sexualidade, em resposta
a crenças e valores culturais ou religiosos, que atingem tanto homens, quanto
mulheres.
De acordo com Shahvisi e Earp
(2018), há indícios de que a aversão ocidental à mutilação feminina e a
permissividade à mutilação masculina (assim como às cirurgias estéticas
genitais femininas, que perseguem objetivos ideológicos muito próximos das
ditas mutilações, mas gozam de prestígio entre mulheres ocidentais brancas)
estejam em linha de diálogo direto com uma islãfobia e à identificação do Islã
como uma sociedade patriarcal e misógina, cujas práticas, por força da
religião, são sempre sexistas, ainda que possuam muito mais homens mutilados
que mulheres entre eles. A disseminação dessa imagem do povo mulçumano permitiu a
camuflagem do preconceito em relação a ele na forma da preocupação com o
bem-estar da mulher, fortalecendo discursos, bandeiras e agendas da luta contra
o sexismo pelo mundo e atendendo interesses políticos e econômicos de
desqualificação desse povo perante a comunidade mundial. Ainda que exista
legitimidade na luta contra o preconceito e a violência dirigidos à mulher, a
retórica que utiliza o costume mulçumano como ilustração da existência de tal
preconceito recorre ao sofisma para tal, em uma análise reducionista da cultura
desse povo, o que produz um preconceito (contra o mulçumano) em busca de
redução de outro (contra a mulher), em uma estratégia instrumentalista, onde os
fins justificam os meios, sem qualquer preocupação com seus efeitos colaterais.
A estrutura do raciocínio é simples: (1) A conseguiu se legitimar como bom
(mito). (2) B é mau porque não atende as expectativas de A (autocentrismo). (3)
Se B é mau, tudo o que faz é ruim (falácia da origem). (4) Se x é
produto de B, boa coisa não é. (5) A disse que a conduta y é má e deve ser
coibida (apelo à autoridade). (6) Quem produz y é ruim, pois uma árvore se
conhece por seus frutos (falácia da generalização). (7) As condutas x e y
parecem idênticas. (8) A disse que x e y são a mesma coisa (reducionismo). (9)
Então B produz também y, logo, B é muito mau e deve ser combatido. (10) Se B produz
y, y é mesmo muito ruim e deve ser combatido (falácia da circularidade). Com
esse raciocínio, produz-se uma associação espúria entre dois elementos
distintos e um justifica o juízo de valor acerca do outro. Como o raciocínio é
complexo e distanciado no tempo, as associações falaciosas não são percebidas.
Aqui opera (a) uma percepção sensorial de dados do real; (b) uma elaboração de
conceitos e concepções derivadas dos dados; (c) a produção de ideias e teorias
derivadas dos conceitos e concepções. Essa é uma operação de fundo kantiano e é
legítima, não fosse o fato de, no caso da equiparação entre sexismo e costume
mulçumano, não ter se considerado as intenções por trás dos atos.
Em outras palavras, numa
abordagem kantiana, a intenção é o que define a moralidade do ato e este deve
se dar, independentemente, das consequências se a lei a priori que o motiva
atende a um imperativo categórico, algo que seja socialmente aceito e
comprometido com a harmonia social. Assim, antes de arbitrar pela classificação
da amputação clitoriana como um ato sexista, há que se colocar as seguintes
questões: o que, de fato, na cultura considerada, motiva o ato?; a motivação em
um contexto possui as mesmas premissas morais, éticas, filosóficas,
ideológicas, técnicas que em outro?. Colocar tais questões impede o passo (8),
do reducionismo, e já minaria a possibilidade de associação espúria e
circularidade, passo (10). No entanto, as conclusões (ideias) advindas desse (e
de qualquer) raciocínio são produtos de reflexões lógico-racionais (passo (c))
e, como tais, carentes de lastro óbvio e direto com a realidade empírica, pois,
apesar de parecer, não derivam da experiência e sim da intelecção sobre a
experiência e, assim, passíveis de ambiguidades, obscuridades, vieses
originados da subjetividade e da biografia de quem observa (passo(a)), julga
(passo(b)) e conclui (passo (c)) e, portanto, permissivas à existência de
antinomias, cuja verdade dos enunciados será apenas, arbitrariamente, decidida
pelos agentes imersos em um campo social, cultural, científico ou qualquer
outro, ou pelos atores interessados nos resultados a se obter. A arbitragem,
para Bourdieu (2004 a, b), seria herdeira da estrutura e do habitus existente
no campo em questão, sendo, no campo científico, a realidade empírica convocada
a priori como árbitro da decisão, em um processo de verificação e refutação de
hipóteses. Para Latour (2000; 2012), seria tributária das negociações de
interesses intersubjetivas realizadas pelos atores em uma rede sociotécnica,
havendo convocação da realidade empírica como legitimadora da decisão, apenas a
posteriori de uma refutação política da hipótese perdedora. Em ambos os casos
não existe isenção da interferência de interesses políticos e econômicos
externos à Ciência na decisão chancelada.
Nesse contexto, acaba por
existir um imperialismo cultural velado ocidental sobre as comunidades
não-ocidentais que propugnam o direito à amputação clitoriana (ou outro
procedimento “mutilatório” genital). Com isso, cria-se uma narrativa
legitimadora de intervenções locais externas sob o discurso de preocupação com
o bem-estar da população autóctone, assim como ocorreu na colonização do Brasil
(Gomes e Novais, 2013), quando os colonizadores, na figura dos jesuítas,
utilizaram a conduta sexual “depravada” (inclusa, e principalmente, a prática
do homossexualismo) dos indígenas como elemento legitimador de sua
catequização, a fim de que suas almas fossem salvas e, a partir disso, toda
sorte de atrocidades contra os indígenas passaram a ser compreendidas como em
seu próprio benefício, pois eram ignorantes e não possuíam discernimento sobre
o que lhes era ou não benéfico. Guardadas as devidas ressalvas entre um e outro
caso, a estrutura do pensamento é a mesma e a história já mostrou, no caso
brasileiro, o quanto as atitudes colonialistas foram violentas e inadequadas.
Tendo em conta essas questões, porque considerar que as intervenções do Ocidentes
sobre as culturas não-ocidentais que praticam intervenções cirúrgicas genitais
como forma de construção de identidades masculinas ou femininas, seja em
resposta a critérios culturais, seja em atendimento a exigências religiosas,
estejam erradas ou sejam más? Apenas porque possuímos, hoje, a chancela da
Ciência e dos pretensos consensos das convenções que editaram os direitos
Humanos Universais? Tais entidades ou instituições sociais modernas diferem em
que medida, em termos de critérios lógico-racionais, das instituições que deram
causa às chacinas e opressões aos nossos indígenas durante a colonização? Ao
considerarmos a Ciência, como arauto do conhecimento verdadeiro, como explicar
que uma teoria passada foi, cientificamente, elaborada e, hoje, é considerada
obsoleta ou absurda? Podemos dizer que ela foi menos científica do que a teoria
que a substituiu e, por esse motivo, as ações embasadas na teoria atual possuem
mais chances de sucesso? Não existiria a possibilidade de uma teoria futura nos
mostrar o quão equivocados estávamos e nos fazer arrepender das decisões
tomadas, quando poderiam ter sido diferentes se incluíssemos, em seu cálculo, a
percepção e opinião dos sujeitos para os quais nossas ações estão sendo
dirigidas? Essas são questões que precisam ser discutidas antes do estabelecimento de normas universais que visem a homogenização de condutas e valores entre culturas que não compartilham das mesmas crenças e necessidades, ainda que a Ciência surja como a grande legitimadora das decisões, pois, como bem trás Annemarrie Mol, em sua Política Ontológica, a realidade é, mais que plural, múltipla e demanda a participação de seus múltiplos atores, munidos das muitas performances pertencentes ao objeto em análise para que ele seja, minimamente, compreendido em sua complexidade, aceitando-se sua multiplicidade ontológica, subjetiva, temporal e espacialmente, determinada (Mol, 1999).
Bibliografia
Bourdieu, Pierre. 2004a. Os
usos sociais da Ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São
Paulo: Unesp.
Bourdieu, Pierre. 2004b. Para
uma sociologia da Ciência. Lisboa: Edições 70.
Gomes, Aguinaldo Rodrigues;
Novais, Sandra Nara da Silva. 2013. Práticas Sexuais e Homossexualidade entre
os Indígenas Brasileiros. Caderno Espaço Feminino - Uberlândia-MG - v. 26, n.
2. Disponível em http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem/article/viewFile/24666/13726.
Latour, B. 2000. Ciência em
ação. São Paulo, São Paulo: Unesp.
Latour, B. 2012. Reagregando o Social: Uma introdução à Teoria do Ator-Rede.
Salvador/Ba-Bauru/SP: EDUFBA/EDUSC.
Mol, Annemarie. 1999. Ontological Politics: a word and some questions. In J. Law & J. Hassard (Org.). Actor Network Theory and After. Oxford: Blackwell Publishers (The Sociological Review, p. 74-89). Disponível em http://dx.doi.org/10.1111/j.1467-954X.1999.tb03483.x.
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Shahvisi, A., & Earp, B. D.
(in press). 2018. The law and ethics of female genital cutting. In S. Creighton
& L.-M. Liao (Eds.) Female Genital Cosmetic Surgery: Interdisciplinary
Analysis & Solution. Cambridge: Cambridge University Press. Disponível
em https://midwivesofcolor.wordpress.com/2018/01/14/the-law-and-ethics-of-female-genital-cutting/.