Walner Mamede
Farmacologista
Mestre em Biologia
Doutor em Psicologia e
Ensino na Saúde
Em pleno século XXI,
ainda, sofremos com males semelhantes aos que nos achacaram durante toda a
história da humanidade e agimos, ressalvadas as distâncias técnico-científicas,
de forma igualmente semelhante aos nossos antepassado mais remotos, quando se deparavam
com algo desconhecido e, aparentemente, ameaçador: esbugalhamos os olhos e
corremos assustados para o escuro aconchegante de nossas cavernas, sem uma
resposta à altura, porque não fomos capazes de prever os acontecimentos e
planejar medidas racionais adequadas. A história sanitária no Brasil não foge a
essa regra. Há, aproximadamente, 200 anos, D. Pedro II iniciou um projeto sanitário
que se incumbiu de realizar o calçamento de ruas, a limpeza do lixo urbano, a
iluminação de vias públicas, entre outras medidas, que identificavam na pobreza
a origem das doenças, expulsando as pessoas de classe inferior do centro urbano
para as periferias da cidade do Rio de Janeiro, onde se processaram as medidas
mais veementes, por ser sede do Império, em proteção à corte e às classes mais
ricas. Quase 100 anos depois, em novembro de 1904, vivenciamos a Revolta da
Vacina, catalisada por interesses políticos anti-oligarquistas e protagonizada
pelo povo brasileiro contra as medidas de Oswaldo Cruz, que motivou a aprovação
da lei que previa multas e restringia direitos sociais (trabalho, escola,
casamento, viagens, hospedagem...) a quem não se vacinasse contra a varíola,
sentimento agravado por outras medidas sanitárias que previam a invasão de
domicílios para desinfecção e extermínio de vetores da febre amarela e da peste
bubônica, o que incluía, por vezes, a queima de pertences pessoais (Fonte:
Portal FioCruz).
A falta de informação pelo
Governo, a forma truculenta da campanha, os boatos de deformação facial pela
vacina (cara-de-vaca), uma repulsa à origem da vacina (pústulas bovinas) e
valores morais (exposição do corpo na aplicação) estavam entre os principais
motivos de resistência. Associado a isso, sob o comando de Pereira Passos, uma
revitalização urbana, com alargamento de vias e derrubada de cortiços e
casebres, foi posta em andamento. As medidas adotadas, por suas características,
atingiam muito mais as classes mais pobres, cujos integrantes eram considerados
os vetores de doenças para as classes mais ricas. Estas, por sua vez, se
sentiram aviltadas pela invasão de suas casas pelas equipes sanitárias. A
Revolta levou ao cancelamento das medidas sanitárias truculentas e de
obrigatoriedade da vacinação e a um decréscimo da adesão à vacina, que vinha sofrendo
um aumento gradual desde 1837, gerando a proliferação do surto. Em 1908, no
auge da mais violenta epidemia de varíola do Rio de Janeiro, em um
comportamento de desespero, houve uma corrida popular para se submeter à
vacinação (Fonte: Portal FioCruz).
Entre várias reedições
dessa história, passamos pelo século XX, chegamos ao século XXI e, em 2005, a
gripe aviária (H5N1) foi manchete nos jornais e motivo de preocupações mundiais.
Em 2007, as preocupações giravam em torno da fusão entre o vírus sazonal e o H5N1,
o que aumentaria seu poder de contágio e tornaria o combate mais difícil, pois
não havia vacina específica para essa mutação. Em 2008, tivemos a febre amarela
como protagonista, mais uma vez, depois de ter sido erradicada no Brasil. Em
2009, era vez da gripe suína (H1N1), que matou 17 mil pessoas em um ano. Atualmente,
estamos às voltas com um novo tipo de corona vírus, denominado SARS-CoV2, um
vírus cuja mutação o torna imune às vacinas conhecidas e dificulta o combate à
sua disseminação. Em geral, as mutações conhecidas da gripe comum não modificam
o vírus a ponto de torna-lo imune às vacinas já existentes. Mutações muito
drásticas e o surgimento de um vírus com um sequenciamento genômico muito
diverso do já conhecido é o que produz preocupações da monta do novo corona vírus, trazido para o Brasil por representantes de estratos sociais superiores, suas primeiras vítimas e já mais protegidas que as camadas mais populares, herdeiras imediatas desse legado, em um verdadeiro apartheid sanitário, em termos de raça, classe e gênero (Fontes: The Intercept-Brasil; Brasil de Fato).
Segundo a OMS (Organização
Mundial de Saúde), o novo corona vírus matou 3,4% dos infectados. Essa
letalidade da doença é considerada baixa em comparação a outras epidemias
recentes, como a de gripe A (H1N1) e do ebola, por exemplo. Jean Gorinchteyn,
do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo, compara o atual corona
vírus com a gripe comum e assegura que “O modo de precaução é absolutamente o
mesmo...” (Fonte: r7-Saúde). Diante das preocupações e das medidas emergenciais,
aparentemente, desproporcionais à estatura do problema, Jans Kluge, Diretor da OMS
para a Europa, afirma que a gripe sazonal mata 60.000 pessoas por ano só no
continente europeu (algo em torno de 500 mil, no mundo), apesar da existência
da vacina, e que as vítimas fatais do SARS-CoV2 registradas na Itália, país que
mais sofre com o novo vírus, em geral, têm baixa imunidade e mais de 65 anos de
idade, pessoas que são, portanto igualmente, vulneráveis à gripe sazonal
(Fonte: Jornal Estado de Minas Internacional).
O médico infectologista
Oriol Mitjà, do Hospital Germans Trias i Pujol, de Badalona (Catalunha), observa que
“...o coronavírus ficará como um vírus
sazonal, de maneira que no verão haverá uma transmissão muito reduzida. O
contágio é através de gotas respiratórias que caem no ambiente. O vírus
sobrevive 28 dias na gota se a temperatura for inferior a 10 graus, mas só
suporta um dia quando faz mais de 30 graus...No momento em que as temperaturas
caírem de novo o vírus voltará. Por isso é importante desenvolver vacinas e
tratamentos que possamos usar nos anos vindouros” (Fonte: El País).
Para Mitjà, apesar de
ser necessário combater o pânico que se instaurou, não devemos baixar a guarda.
Físico, médico, epidemiologista e professor catedrático da
Escola de Matemática Aplicada da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, o
Dr. Eduardo Massad, Ph.D., é especialista em modelos matemáticos para estimar o
ônus de doenças infectocontagiosas. Em entrevista para o MedScape, ele afirma:
“...[o] novo coronavírus
é uma doença relativamente branda e...hoje tem uma taxa de mortalidade que está
entre 2% e 3%...Calculamos essa mortalidade dividindo número de pessoas que
morreram pelo número de casos notificados, por isso tende a cair. Os dois
últimos coronavírus, que foram causadores de SARS (do inglês, Severe Acute
Respiratory Syndrome) e MERS (do inglês, Middle East
Respiratory Syndrome) tinham taxa de mortalidade muito
superior...Acontece que o número de casos notificados é a ponta do iceberg do
total de casos de infecção. Um número muito grande de infecções passa
despercebido ou é confundido com uma gripe normal e não entra na conta. Só
entram na conta os casos graves, de pessoas que acabam sendo hospitalizadas. A
taxa de mortalidade desse coronavírus deve ser cinquenta ou talvez cem vezes
menor do que a que vem sendo propagada. A SARS teve letalidade em torno de 10%,
chegando a 17% em alguns locais. A letalidade da MERS foi muito maior. Chegou a
uma média de 35% ...Em alguns lugares, o H3N2 teve letalidade maior do que
o próprio H1N1...Acredito que podemos ter um número considerável de
mortalidade, mas ainda assim no final do dia a dengue terá feito estrago maior
do que o novo coronavírus...A própria gripe comum pode levar a pneumonia grave.
A situação ficará mais preocupante quando a temperatura começar a baixar, em
cerca de um mês. Como os sintomas são muito parecidos, não vamos conseguir
sequer diferenciar quem está com gripe por Influenza ou coronavírus...recomendo
tomar as vacinas existentes para tudo aquilo que pode acometer o pulmão, como
os pneumococos e o Influenza...o esquema de vacinação tem de estar sempre em
dia. É a única esperança que a gente tem para escapar disso...A Organização
Mundial da Saúde (OMS) também está escaldada. Em 2009, decretaram pandemia de
H1N1 e todo mundo saiu comprando oseltamivir e máscaras, mas a situação não
teve a dimensão prevista. Alguns anos depois, decretaram a epidemia de zika e
ela arrefeceu. Acredito que devem esperar até o último momento para declarar
pandemia, assim como foi com o vírus Ebola, em 2014...Tenho a impressão de que
há uma tendência a supervalorizar a importância desse surto. Na minha opinião,
estão faturando politicamente em cima desse vírus. Muita gente que não aparecia
há muito tempo agora não sai dos meios de comunicação. Não sei se é uma
estratégia política para desviar de outros assuntos, que são tão ou mais
graves. Temos novamente crianças morrendo de sarampo e os casos da doença
continuam aparecendo. É uma vergonha. Considerando que o pico da dengue
acontece entre abril e maio, é muito preocupante a epidemia no Paraná, onde a
situação está completamente descontrolada e há muitos casos graves em pessoas
de todas as idades. Não estou dizendo que é para nos descuidarmos do novo
coronavírus, mas é desproporcional essa manifestação dos órgãos oficiais em
detrimento de outros problemas de saúde do país” (fonte: MedScape)
Andreas Kappes,
professor da City University, em Londres, e especialista em psicologia e
neurociência, estuda como a incerteza afeta nosso comportamento e conduziu um
experimento onde uma "gripe africana" fictícia foi utilizada para
avaliar o comportamento das pessoas em relação a decisões que poderiam colocar em
risco a vida de outras pessoas. Para ele “...o pânico não começa de
imediato...No começo, as pessoas acham que estão de alguma forma
seguras...Podemos pensar: 'Não é provável que eu pegue o novo coronavírus, mas
as outras pessoas, sim'”. Mas um momento de estresse, que pode ser ilustrado
pela grande visibilidade do corona vírus nas mídias sociais, rompe essa bolha
otimista e começamos a adotar atitudes valorativas em relação aos resultados
estatísticos oficiais, desconfiando deles, identificando a nós e nossos entes queridos
com as vítimas e os cenários projetados tornam-se os piores possíveis,
condicionando nossas ações no chamado "efeito manada", puro pânico irracional.
Segundo Steven Taylor, "As pessoas observam as outras para saber como
devem responder, é mais instintivo do que racional”. Outro motivo para o
pânico, segundo Taylor, é a falta de credibilidade que possuímos em soluções
simples para problemas, aparentemente, complexos (Fonte: r7-Saúde).
Assim, se a nossa
percepção para o problema, e não o problema em si, condena a solução como
ineficaz, a desnecessidade do uso de máscaras e o simples ato de lavar bem as
mãos, em lugar do álcool-gel, para se precaver contra a contaminação, não
parece ser uma solução viável, na visão da população. A incredulidade nas ações
e orientações dos especialistas, considerados distantes da “realidade do povo”,
o excessivo apego a tradições e a necessidade de soluções especiais para
problemas especiais produzem um círculo vicioso que compromete a eficiência das
já intempestivas soluções planejadas pelos Governos. As soluções especiais e as
opiniões dos “leigos especialistas” não tardam a chegar na forma de memes e Fake
News veiculados nas redes sociais. Steven Taylor, autor do livro The
Psychology of Pandemics (A Psicologia de Pandemias, em tradução) diz que "A diferença
fundamental dessa pandemia para outras são as redes sociais e nossa
interconexão. As pessoas são expostas a vários materiais, inclusive fotos e
textos dramáticos. É uma 'infodemia'", afirma...” (Fonte: r7-Saúde).
Parece que não saímos
do lugar quando olhamos para trás, pois a falta de (in)formação social, a
proliferação de boatos, o estabelecimento de condutas pessoais fundadas em
valores e não em fatos, a análise parcial do problema e a instituição de ações governamentais
impulsionadas por interesses de grupos específicos, ainda continua com a mesma
tônica de 200 anos atrás. Quando associamos isso a uma convocação tardia dos adequados
hábitos de higiene, de uma ética sanitária pessoal baseada em interesses
coletivos e dos procedimentos governamentais de educação, prevenção e contenção,
apenas quando o protagonista de uma doença já se apresentou como ameaça à saúde
pública, particularmente, das camadas mais ricas da sociedade, colocando em
xeque as seguranças e economias nacionais, temos a dimensão do problema
instaurado. Esse hábito, via de regra, abre espaço para os boatos e as falsas
soluções, geram incredulidade e dúvidas sobre as medidas corretas, produz
pânico generalizado e induz medidas desproporcionais intempestivas e
desesperadas, que perturbam a ordem social e denunciam as mazelas do processo
civilizatório, às vezes, causando mais mal do que bem, em uma iatrogenia nos
moldes da Revolta da Vacina há mais de 100 anos. Isso nos ensina que o excessivo
relaxamento, não só dos Governos, mas sobretudo dos cidadãos quanto às suas
responsabilidades coletivas e privadas, no interregno entre um surto e outro, e que convocar a consciência coletiva, somente, nos momentos de crise, esquecendo-nos dela nos momentos de paz, em favor do individualismo característico das sociedades atuais, em um modelo necropolítico, é algo infrutífero e um erro que não pode continuar sendo reproduzido nos próximos 200 anos. E, nesse cenário, instituições como o SUS têm papel fundamental, pois surgem como representantes máximos da equidade social e do acesso à saúde à milhares de cidadãos, reafirmando-se a necessidade de seu fortalecimento e qualificação, contra a lógica neoliberal de seu esfacelamento em nome de uma monetização cruel e promotora da iniquidade sanitária no Brasil.
FONTES
https://www.estadao.com.br/noticias/geral,europa-enfrenta-temporada-de-gripe-com-virus-mais-forte,20070126p2354
[1] Por ser o SARS-CoV2 uma
nova cepa e não haver dados científicos formalizados em periódicos e livros de Saúde
sobre a atual epidemia, o presente texto recorreu à análise de fontes mais
populares e contou com uma compilação da opinião de especialistas em diferentes
veículos citados ao final dos parágrafos e períodos. Uma evolução do presente texto foi submetida em março de 2020 e publicada em julho do mesmo ano, pela UERJ, e pode ser conferida em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/sustinere/article/view/50902