Por Walner
Mamede
O sentimento do sublime frente ao belo
não é lógico, ele provém, para Gilles Deleuze, de um acordo discordante entre a
imaginação e a razão, uma contradição que produz harmonia na dor. A intuição
sensível, que nos põe em experiência com o objeto, nos exige um juízo lógico,
que produz conhecimento, ou um juízo estético, que engendra um sentimento de
prazer ou dor, nos convoca à vida (vivificação) e cria condições para a
contemplação do belo, quando se nos apresenta. Acessar o belo exige retermo-nos
no objeto de contemplação e, para tanto, é o ócio inútil a instância da vida
humana capaz de permití-lo, não o labor, não o trabalho, pois que estes, como
já alertava Hannah Arendt, estão comprometidos com a utilidade, buscando a subsistência
do corpo e a conquista de bens, respectivamente. O labor e o trabalho não nos
permitem o espaço e o tempo necessários à contemplação e às tarefas,
essencialmente, humanas como a arte e a política. Nem tampouco a demora,
inestimável ao jogo entre a sensibilidade e o entendimento, é-nos permitida na
ausência do ócio, e, assim, a consciência de que a razão dedutiva possui, em
si, algo de perverso e nos anestesia diante da vida sequer se manifesta
minimamente. Seria Eichmann o eterno fantasma a nos assombrar, nos alertando de
que a banalização do mal decorre da negligência com o belo, com o sublime?
Aqui, parece razoável remetermo-nos a
Hermeto Paschoal[1],
para quem “não se pode...colocar o saber na frente do sentir”. Kant diria que a
experiência estética busca preencher o abismo que se instala entre o sujeito e
o objeto apresentado à sensação, abismo irremediável pelo instituto do
conhecimento. No sentimento estético, os conceitos preservam seu valor
intrínseco, mas de forma coadjuvante, permitindo ao juízo operar
não-dedutivamente na produção simultânea e explosiva de ideias libertas da
necessidade de memorização e entendimento e do compromisso com o útil, o
histórico, o moral e o lógico. Nesse sentido, a experiência estética não é
prática (bem), nem intelectual (bom), mas subproduto do jogo entre as
faculdades da sensibilidade, imaginação e entendimento, que, da contemplação
plácida do belo ao movimento do ânimo pelo sublime, materializa uma
possibilidade derivada da condição humana, um devir sempre subjetivo, ainda que
pareça aderente ao objeto. A vivificação e o prazer trazidos por essa relação
não possui condições de se manifestar na presença de regras prévias que a
determinem. Em segundas palavras, na ausência da liberdade para se jogar, o
abismo entre sujeito e objeto é alimentado e o prazer, o encantamento, o abalo,
o espanto, a surpresa, o susto, a alegria, o encontro, o entusiasmo, a comoção,
a atração, a repulsa, a embriaguez e a lucidez possíveis se perdem, com eles levando
nossa capacidade de sentirmo-nos adaptados ao mundo e de compartilhá-lo. A liberdade,
pressuposto da autenticidade, é obscurecida pela utilidade imanente às regras
prévias da contemplação objetivada, submetendo o belo à razão e roubando-o à
imaginação.
A esse respeito, afirmaria Paulo
Leminski[2] sobre o que Francis Bacon
denominara “ciência da imaginação”: “A poesia é um inutensílio, a única razão
de ser da poesia é que ela faz parte daquelas coisas inúteis da vida que não
precisam de justificativa porque elas são a própria razão de ser da vida...Querer
que a poesia tenha um ‘por quê’, querer que a poesia esteja à serviço de alguma
coisa, é a mesma coisa que querer, por exemplo...que o orgasmo tenha um por que...Acho
que a poesia faz parte daquelas coisas que não precisam ter um por que. Para
quê ‘por que’?”. E assevera, ainda, Leminski: “As pessoas sem imaginação estão
sempre querendo que a arte sirva para alguma coisa...Não enxergam que a arte (a
poesia é arte) é a única chance que o homem tem de vivenciar a experiência de
um mundo da liberdade, além da necessidade”.
E, por oportuno, à guisa de abertura para
novas divagações, remetemo-nos, mais uma vez, a Hermeto Paschoal: “...[na
música] o que dá dinheiro é sempre burrice...Não tive e nem vou ter nenhum
retorno financeiro com minha obra, mas meu prazer, minha alegria, continua
sendo tocar. Por isso, as minhas músicas eu quero mais é que sejam pirateadas.
Quero mais é que as pessoas toquem, ouçam, a conheçam. E pra mim, quem reclama
da pirataria é quem faz música apenas para vender. Meu valor não são as notas
de dinheiro. São as notas musicais...” e, complemento eu, o valor depositado
nas notas musicais não é outra coisa senão a liberdade de gozar o belo na
inutilidade do ócio, à distância do labor e do trabalho que escravizam nossas
almas e limitam nossas mentes.
[1]
Hermeto
Paschoal, compositor arranjador e multi-instrumentista brasileiro, nascido em 22
de junho de 1936, em Olho d'Água das Flores, Alagoas (https://www.cartacapital.com.br/cultura/na-musica-o-que-da-dinheiro-e-sempre-burrice-diz-hermeto-paschoal/ e https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/4843831).
[2]
Paulo
Leminski, escritor, poeta, crítico literário, tradutor e professor brasileiro,
nascido em Curitiba, 24 de agosto de 1944 e falecido em Curitiba, 7 de junho de
1989 (https://tateios.wordpress.com/2013/09/27/o-que-e-a-poesia-paulo-leminski/).
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