POR MARCELO
MEDEIROS
Originalmente disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/04/1873529-mudar-a-previdencia-exige-cuidado-social-diz-pesquisador-brasileiro.shtml?cmpid=compfb
RESUMO Em resposta a economistas do governo ("Ilustríssima", 26/3),
autor reconhece necessidade de reformar a Previdência para equilibrar as
contas, mas argumenta que a proposta atual impõe restrições desnecessárias aos
mais pobres, cria pressão injusta sobre as mulheres e concede privilégios a
grupos influentes.
Bruno
Santos/Folhapress
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A Previdência não
é um problema. É uma solução, e das mais importantes: ela protege pessoas que
perderam parte de sua capacidade de trabalhar. A proposta que está em pauta no
Congresso, entretanto, encara a Previdência como problema, não como solução.
Daí por que sua motivação central é economizar dinheiro no futuro.
Mais ainda, dá pouca atenção ao fato
de que o Brasil é incrivelmente desigual. Tanto assim
que a reforma, até o momento, tem três características principais: não traz
benefícios adicionais aos mais pobres, é injusta com as mulheres e complacente
com os mais ricos. Trata-se de importante medida de
ajuste fiscal, mas sem intenção de ser socialmente responsável.
Nada há de errado em se preocupar
com os gastos. Como a Previdência tem forte impacto nas contas públicas, o aumento
das despesas precisa ser controlado. Sem reformas, ou com modificações
parciais que mantenham privilégios, os desembolsos com aposentadorias e pensões
consumirão boa parte do dinheiro que o país deveria investir em outras áreas,
como saúde, educação e infraestrutura. A pergunta crucial, portanto, não é
se devemos controlar gastos, mas quais gastos devemos controlar. A resposta
deveria soar óbvia.
A Previdência, tanto quanto o Brasil,
é extremamente desigual. Os números variam conforme o ano, mas, arredondando,
eis a regra de bolso: entre os aposentados, o 1% mais rico fica com fatia
equivalente à da metade mais pobre. Em outra comparação, 50% dos recursos
previdenciários vão para os 10% mais ricos, enquanto 25% vão para os 66% mais
pobres, pelo que mostra a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE.
Quando se quer economizar, o mais
sensato é olhar antes para onde mais se gasta. Se o país precisa poupar
recursos, é melhor mirar as aposentadorias mais altas. Faz sentido que seja
assim. Diminuir despesas com os mais ricos não só afeta bem menos pessoas como
também promove economia muito maior.
Assim, a tentativa de equilibrar as
contas da Previdência poderia contemplar contribuições progressivas –isto é,
proporcionalmente maiores para quem ganha mais– e deveria passar
necessariamente pela fixação de um teto válido para todos, inclusive militares,
funcionários estaduais e municipais.
Aliás, se a reforma ao menos
atingisse todos os servidores, como prometeu vagamente o governo de Michel
Temer (PMDB), a pressão sobre o caixa cairia o suficiente para permitir
transição mais suave e menos restrições à aposentadoria dos mais pobres e das
mulheres.
PREJUÍZOS
Diferentemente do que sugeriram
Mansueto Almeida e Marcos Mendes em artigo publicado neste caderno ("Ilustríssima", 26/3), não
há nenhum sinal de que a proposta beneficiará a população de baixa renda. É
certo, por outro lado, que trará prejuízos se não for alterada.
"População de baixa renda"
talvez seja uma expressão abstrata. Em termos concretos, esse é o contingente
que reúne de metade a dois terços da população nacional. Ou seja, de 100
milhões a 130 milhões de brasileiros com dificuldade para bancar moradia
decente, por exemplo, ou compensar aquilo que o SUS não oferece. Essas pessoas, um dia, precisarão se
aposentar. O país deve cuidar delas, não só dos miseráveis.
A proposta do governo, porém, inclui
três medidas excessivamente restritivas para os mais pobres, e só o faz porque
lhes impõe as mesmas regras válidas para os mais ricos. A primeira eleva de 15 para 25 anos
o tempo mínimo de contribuição. A segunda aumenta
de 65 para 70 anos a idade mínima para o acesso à assistência social dos
idosos. A terceira torna menores as aposentadorias de quem contribuir por menos
de 49 anos*.
Embora muita gente manifeste
preocupação com fixação de uma idade mínima, o maior problema está no tempo de
contribuição. Idades mínimas tendem a tornar a
Previdência mais igualitária, já que os trabalhadores mais bem posicionados são
os que têm mais facilidade para acumular o tempo de contribuição necessário. É razoável que, para fazer jus à
aposentadoria, seja preciso contribuir, e não apenas trabalhar. O dinheiro,
afinal, precisa vir de algum lugar. Exigir muitos anos de contribuição,
contudo, penaliza os mais vulneráveis.
INFORMALIDADE
São dois problemas distintos. O
primeiro, mais grave, é a limitação do acesso criada pelo simples aumento do
tempo mínimo de contribuição. O segundo, o desconto aplicado a quem se
aposentar com menos de 49 anos* de contribuição.
Ter emprego estável, de boa
qualidade e com carteira assinada não constitui regra, mas exceção. Não há
nenhum problema em cobrar períodos longos de contribuição dessa parcela
minoritária. Em relação à maioria dos brasileiros, no entanto, a exigência
resulta injusta. Quem mais depende da Previdência é quem tem mais dificuldade
para manter contribuições por anos a fio.
As restrições da reforma serão ruins
para os mais pobres porque muito trabalhador terá de permanecer ativo depois
dos 65 anos para cumprir os 25 anos de contribuição. Continuar ativo após os 65 anos
talvez não pareça excessivo para quem se dedica a tarefas intelectuais. Para a
maioria, porém, a realidade é outra. Quem de fato precisa da aposentadoria e da
assistência fez trabalho pesado a vida inteira. Não precisa ser especialista; basta
olhar ao redor. A massa de trabalhadores de baixa renda no Brasil está na
construção civil, nos empregos domésticos, na limpeza, na manutenção e em
outras ocupações que exigem esforço físico intenso demais para idosos.
Os números variam ao longo do tempo,
mas, historicamente, mais ou menos metade da força de trabalho está na informalidade. São pessoas que, trabalhando
duro e ganhando pouco, nem sempre têm renda para contribuir como autônomo ou
microempresa individual. Além disso, há muito desemprego, subemprego e
rotatividade de empregos no Brasil. Isso significa que metade do país
terá dificuldade para cumprir o mínimo de 25 anos. Alguns conseguirão, outros
não.
A regra proposta pelo governo é injusta. Melhor seria se
trabalhadores com 15 a 24 anos de contribuição pudessem se aposentar recebendo
o mínimo aos 65 anos de idade. Essa alternativa seria mais sensível com a
população pobre e não causaria grande pressão nas contas, pois o maior problema
está nas aposentadorias de valor elevado.
BPC
Especialmente ruim para os pobres é
a proposta de restringir o acesso ao BPC (Benefício de Prestação Continuada),
bem como diminuir seu valor. Trata-se de benefício de assistência social
destinado a idosos que não têm renda para viver de forma aceitável.
Pelas regras atuais, pode receber o
BPC aquele que, tendo pelo menos 65 anos, não contribuiu o suficiente para se
aposentar e é extremamente pobre –a renda de sua família não pode superar um
quarto de salário mínimo por pessoa. O governo propõe elevar essa idade
de 65 para 70 anos. Quem vai contratar um pedreiro ou uma faxineira de 69 anos?
De 66? São essas as pessoas que precisam do BPC aos 65 anos. Aumentar a idade
de acesso não garantirá que elas trabalhem mais e certamente vai deixá-las
desprotegidas. Em suma, a medida ampliará a pobreza entre os idosos, um problema
que o Brasil vinha conseguindo resolver.
A economia compensa? Ninguém tem a conta exata. Apenas se
sabe que o dinheiro poupado será pouco, talvez de 1% a 2% do gasto
previdenciário total, o que daria, quando muito, 0,1% do PIB. Ou seja, cifra
irrelevante em relação ao tamanho do sacrifício imposto a idosos pobres. Para piorar, pela proposta do
governo, o BPC não teria mais seu valor associado ao salário mínimo. Se a
economia voltar a crescer e o salário mínimo tiver ganhos acima da inflação, o
BPC ficará para trás.
Criar outra desvantagem para idosos
pobres é um bom caminho? Não. A iniciativa não produz
economia digna de nota. Se, numa hipótese surreal, o governo dobrasse o salário
mínimo e congelasse as aposentadorias e pensões, o montante poupado chegaria a
meros 10% do gasto previdenciário.
Num cenário mais realista, se o
salário mínimo tiver aumento de 10% acima da inflação na próxima década, o
impacto resultante do pagamento do BPC segundo as regras em vigor ficará em
torno de 1% do que se gasta com Previdência hoje –um dinheiro, vale lembrar,
direcionado a pessoas muito pobres. De acordo com os dados da Pesquisa
de Orçamentos Familiares, do IBGE, a despesa com as aposentadorias mais altas,
o 1% mais rico dos aposentados, equivale a mais de dez vezes esse montante.
Na conta de curto prazo, as
alterações no BPC têm muito mais de antipatia em relação à assistência social
do que de preocupação objetiva com as finanças públicas. No longo prazo, as restrições ao BPC
em tese têm a ver com efeitos colaterais produzidos pela reforma. Ao
dificultarem o acesso à aposentadoria, as mudanças propostas pelo governo
empurrarão mais gente para a assistência social. Ou seja, sem endurecer as regras
do BPC, haveria simples troca de parte da Previdência por assistência.
Ocorre que não há estimativa
aceitável para vários dos custos sociais decorrentes de efeitos colaterais da
reforma. Não foram apresentadas, porque inexistem, contas de quantas pessoas de
baixa renda deixarão de se aposentar aos 65 anos por falta de contribuição.
Portanto, o receio de aumento de procura do BPC não se baseia em nada que não
seja especulação. Espera-se que o relator da reforma
na Câmara, deputado Arthur Maia (PPS-BA), retire da proposta essas mudanças,
mantendo o benefício tal como é hoje. A julgar pelo que o próprio presidente
Temer afirmou na quinta-feira (6), o governo se dispõe a aceitar o recuo.
MULHERES
As mulheres, em especial as de baixa
renda, têm mais dificuldade em contribuir para a Previdência. Por uma série de
razões, que vão da discriminação à falta de creches, elas saem do mercado
formal quando cuidam de filhos e voltam mais tarde, depois de terem permanecido
um período na informalidade ou sem trabalhar. Aplicar as mesmas regras para homens
e mulheres é ignorar esse fato e fazer cair sobre as mulheres mais pobres um
peso desproporcional na economia de gastos. Não se trata de corrigir
desigualdades. É apenas questão de não propagá-las pela Previdência. As
mulheres, mais do que os homens, terão dificuldade para cumprir os 25 anos
mínimos de contribuição. Além disso, serão mais afetadas por
outro ponto da proposta: quem contribuir durante um mínimo de 25 anos, mas
menos de 49*, não receberá aposentadoria integral.
Em termos gerais, a ideia do governo
é esta: quem se aposentar aos 65 anos receberá 51% da média dos salários de
contribuição, além de um ponto percentual a mais para cada ano de contribuição.
Como todos precisam contribuir pelo menos 25 anos, o mínimo a receber é 76% da
média salarial (ou um salário mínimo, se este for maior). Daí por que a aposentadoria integral
(respeitado o teto de R$ 5.531) seria paga apenas mediante 49 anos* de
contribuição. Quem contribuir durante 35 anos, por exemplo, receberá 86% do
valor integral (51 + 35).
Para os ricos, que fazem poupança ao
longo da vida, é fácil compensar a diferença. Os pobres não podem se dar esse
luxo. Terão de trabalhar mais tempo ou reduzir seu padrão de vida. Quanto a isso, não tem sentido comparar a realidade do Brasil com a de países ricos, como fazem os
economistas do governo. O desconto aplicado na Alemanha, na França ou na
Austrália pode ser maior que o proposto na reforma brasileira, mas também é
maior a capacidade de poupança de suas respectivas populações. Basta imaginar um brasileiro que
tenha recebido dois salários mínimos ao longo de toda a vida, mas sem conseguir
contribuir de forma ininterrupta desde os 16 anos de idade e muito menos fazer
poupança própria. O desconto fará falta.
Ao saírem de empregos formais para
cuidar de filhos, as mulheres terão menos tempo de contribuição e, portanto, um
desconto maior que o dos homens. É certo que elas terão contribuído menos, mas
é injusto tratá-las da mesma forma. Na maioria das vezes, elas não
deixam de contribuir para a Previdência porque querem, mas porque não podem.
Compensar isso exigiria uma sociedade com baixo desemprego, mínima
informalidade e bons sistemas de creche e de saúde, coisas que não teremos
nesta década ou na próxima.
Regras diferenciadas de tempo de contribuição
para mulheres não dão vantagens a ninguém nem compensam o passado. Devem
existir apenas para que não se propaguem desigualdades.
POUPANÇA PÚBLICA
Entre os argumentos a favor da
reforma da Previdência, o governo sustenta que o dinheiro economizado será
usado para proteger crianças. A não ser que exista uma cláusula constitucional
determinando a transferência desses recursos para projetos voltados à infância,
a proposição é falsa.
Dado o período de transição, a
reforma terá pouco efeito imediato em termos de economia de recursos. Mais
importante, não se pode afirmar que o dinheiro poupado daqui a 15 anos vai para
as crianças ou para os pobres, já que cabe ao Congresso e ao Executivo tomar
essa decisão –até lá, teremos diversas renovações dos Poderes. Nada impede que recursos
economizados na Previdência venham a bancar supersalários ou propaganda, entre
outros exemplos pouco edificantes.
Tampouco se pode prometer que essas
quantias resultarão em benefícios para os mais pobres como consequência do
crescimento da economia. Menos ainda que a eventual expansão irá beneficiar os
aposentados pobres. Primeiro, porque muitos dos gastos
públicos não geram crescimento. Segundo, porque a economia pode se expandir de
formas diferentes, e não está dado que todos ganharão igualmente com isso.
Estudos recentes mostram que, desde
meados da (primeira) década de 2000, o 1% mais rico da população se apropriou de cerca de
30% de todo o crescimento do país. O bolo aumentou, mas o pedaço maior ficou
com os mais ricos. Ou seja, mesmo que cada centavo
preservado com a reforma fosse usado para estimular a economia brasileira, e
mesmo que por causa disso a renda de todos melhorasse no mesmo padrão dos
últimos anos, mais de um quarto do crescimento seria apropriado pelo topo da
pirâmide. A metade mais pobre ficaria com algo em torno de 13%.
Em terceiro lugar, a lógica é
inimiga do argumento de que os aposentados mais pobres serão beneficiados.
Abuse da generosidade e imagine que toda a despesa economizada será convertida
em crescimento e que todo o crescimento se traduzirá em criação de melhores
postos de trabalho. Dado que aposentados não trabalham, como eles tirariam
proveito disso?
Quarto, faça o raciocínio inverso.
Abuse do ceticismo e suponha que essa economia de gastos é capturada por grupos
de pressão. Como os mais pobres têm menos poder de barganha, é possível que o
dinheiro economizado acabe, na verdade, por beneficiar os mais ricos, cuja
capacidade de influência política é muito maior. Nesse caso, restringir a Previdência
prejudicará os pobres apenas para beneficiar os ricos.
PRIVILÉGIOS
Meses atrás, quando apresentou pela
primeira vez suas ideias para a reforma, o governo parecia disposto a tornar a
Previdência mais igualitária, submetendo todos às mesmas regras. Hoje está
claro que o rigor válido para grupos mais fragilizados não se aplica aos que
conseguem exercer pressão.
A tolerância com vantagens ou mesmo
privilégios de alguns estamentos específicos tem duas consequências graves. Faz
com que os trabalhadores mais vulneráveis paguem muito mais do que deveriam
pelo pato do ajuste previdenciário e lança para o futuro a necessidade de novas
mudanças capazes de equilibrar as contas. No discurso original do governo,
havia dois fatores importantes de redução de despesa: limitar a acumulação de
aposentadorias e impor aos servidores públicos civis e militares o mesmo teto a que se
submetem os trabalhadores da iniciativa privada.
Impedir o acúmulo de aposentadorias
ainda faz parte da reforma; trata-se de medida que produz efeitos imediatos.
Além disso, iniciativas adotadas em 2013 e reforçadas agora acelerarão o
controle dos gastos com servidores federais. O governo, contudo, recuou em
relação aos servidores estaduais e municipais, deixando-os livres do teto. Como
eles respondem por fatia relevante do deficit atual, a conta talvez tenha que
ser paga por todos se o governo federal precisar criar um plano para resgatar
as finanças de Estados e Municípios.
Mais surpreendente ainda é o silêncio
em que se mantêm os defensores da reforma quanto aos militares. Ninguém se apresentou para explicar
por que o governo fala grosso com mulheres, trabalhadores do setor informal e
idosos pobres, mas afina quando o assunto são as Forças Armadas. Do ponto de vista técnico, nada no
documento de justificativa da proposta recomenda a distinção. Verdade que militares obedecem a
normas especiais de aposentadoria em vários países. Nos EUA, por exemplo, podem
se aposentar –ir para a reserva é, na prática, uma aposentadoria– antes dos 65
anos de idade, mas incide sobre seu benefício desconto similar ao proposto pela
reforma brasileira, proporcional ao tempo de contribuição.
Não há problema na diferenciação de
tratamento em si –como se viu, seria justo cobrar contribuições maiores de quem
ganha mais e exigir menos tempo de contribuição de grupos vulneráveis. O problema está na concessão de
imunidade a grupos privilegiados e na imposição de regras espartanas aos
demais. A reforma da Previdência precisa ser
discutida de uma vez e para todos, sem deixar para depois problemas que o
governo prefere não enfrentar agora –especialmente quando esse gesto se traduz
numa conta pesada demais para as pessoas de renda mais baixa. Como isso não foi
feito, é profundamente injusto insistir em regras rigorosas para a população
mais vulnerável.
*O tempo de contribuição foi ontem reduzido para 40 anos.
MARCELO MEDEIROS, 47, é professor da
Universidade de Brasília e pesquisador do Ipea e da Universidade Yale
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