Walner Mamede
É
fato conhecido e reconhecido que diversas casas de show, boates ou bares com música
ao vivo ou mecânica têm promovido perturbação da paz, do sossego e da saúde e
comprometimento do meio ambiente urbano por poluição sonora, pois, apesar das
alegações em contrário, não possuem as condições estruturais mínimas para
sediar eventos festivos e musicais, conforme estabelecido pelas normas vigentes
no Brasil: Classificação CNAE: 823000200X - GI-3, própria para casas de festas,
shows e eventos.
A
poluição sonora se tipifica, nos casos citados, pelo vazamento de incômodo ruído
através das paredes, janelas, orifícios e portas para entrada e saída de
clientes. Quando o estabelecimento é um ambiente aberto a situação é, ainda,
pior. Além disso, claro, não podemos nos esquecer daquele incômodo produzido
pelos carros à porta do estabelecimento, os quais, muitas vezes, estacionam nas
portas das residências ou reduzem a velocidade, tendo por ruído seus próprios
motores e sons automotivos, arrancando, por vezes, em velocidade, com as
famosas cantadas de pneu, e têm seus proprietários embriagados se envolvendo em
discussões acaloradas madrugada adentro. Há de se entender que os ruídos
provocados por clientes efetivos ou potenciais no exterior do estabelecimento
têm pouca probabilidade de serem eficientemente controlados pelos proprietários
(o que não se estende à polícia, que deveria ser atuante), mas o mesmo não
deveria ocorrer com os ruídos provocados pelo próprio estabelecimento ou em seu
interior em decorrência de suas atividades.
Lembro que a legislação é clara ao determinar o grau de incomodidade (Lei 8617/2008 e art. 101 do Plano Diretor de Goiânia), especificando o nível de ruído permitido pelo estabelecimento, e exigir estudo do impacto urbano promovido (Lei 8646/2008 e arts. 94 à 97 do Plano Diretor de Goiânia), prevendo o necessário controle da poluição sonora, conforme art. 14 da Lei Complementar 171 (Plano Diretor de Goiânia), a fim de preservar a paz e a saúde humanas e evitar a degradação do meio ambiente, compatibilizando a preservação deste com o desenvolvimento econômico, social e cultural (Lei Federal 6938/81).
Vale
ressaltar, ainda, que a saúde e o bem-estar não são comprometidos apenas pelo
volume excessivo do ruído emitido por máquinas, vozes e equipamentos de som,
mas também por sua constância ou intermitência, particularmente, se de
ocorrência em horários de descanso, independentemente dos decibéis alcançados (ZORZAL,
BRUNS e TONIN et al, 2003) [1], o que é coerente com o conceito
ampliado de saúde preconizado pelo Sistema Único de Saúde-SUS, no qual a saúde
do cidadão não se restringe à ausência de doença e muito menos a aspectos
relativos ao corpo biológico, mas se estende a determinantes e condicionantes
sociais e sobre os quais o poder público possui obrigação de atuar a fim,
inclusive, de preservar a força de trabalho e a produtividade do país.
Frequências acústicas incômodas, mesmo aquelas de intensidade média à baixa e
ainda que em limite inferior aos decibéis preconizados pela NBR 10151, têm a
propriedade de, em médio e longo prazos, insidiosamente, causar níveis
preocupantes de estresse, que podem redundar em patologias crônicas físicas ou psíquicas,
comprometendo, inclusive, o desempenho social e profissional do indivíduo e, em
escala, da própria comunidade. Os níveis, legalmente, determinados visam
estabelecer um parâmetro seguro para a fiscalização estatal, mas não prescindem
de uma avaliação crítica por parte do poder público em termos de vigilância sanitária,
quando este se dispõe a garantir a qualidade de vida de seus cidadãos, como
convém a um estado democrático de direito.
Em
um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (http://labs.icb.ufmg.br/lpf/2-23.html),
foi encontrado que:
A partir do valor médio de 35 dBA, reações vegetativas
e no EEG e mudanças na estrutura do sono são verificadas. Enquanto os estágios
superficiais aumentam a duração, o tempo total de sono e os estágios profundos,
MOR e estágio 4, reduzem bastante. O despertar já pode ser atingido em 44 dBA e
53 dBA de pico respectivamente para ambientes calmos, média de 25 dBA, e
barulhentos, 45 dBA. Mas, quando o ruído do fundo está a 65 dBA, os reflexos
protetores do ouvido médio parecem funcionar, anulando em parte a audição e
introduzindo insegurança pela perda da vigília, mostrado pela reação de maior
latência para dormir. Por isto provavelmente a 75 dBA de ruído de fundo a
qualidade do sono se recupera parcialmente, mas longe da qualidade de níveis
mais silenciosos. A poluição sonora portanto piora significantemente a
qualidade absoluta do sono, acarretando pior desempenho físico, mental e
psicológico e perda provável da alerta auditiva...
Para
Fernando Pimentel Souza, pesquisador responsável pelos estudos, “o ruído de
pico desperta mais quando o ruído de fundo é menor, sendo abafado seu efeito
quando o ruído de fundo é maior, mas aí já se consolidou prejuízos persistentes
na qualidade do sono”. Ainda conforme Souza, em consonância com estudos mais
recentes da OMS, o ruído contínuo médio em quartos de dormir não deveria ser
maior que 30 dBA, com picos máximos de 45 dBA, a fim de se evitarem os reflexos
negativos que acompanham o cidadão para além dos momentos efetivos de sua ocorrência,
com o que Negrão (2009)[2]
denominou de efeitos extra-auditivos.
A poluição sonora tem reflexos em todo o organismo e
não apenas no aparelho auditivo...Alguns dos efeitos psicológicos causados pelo
ruído no homem podem ser enumerados da seguinte forma: perda da concentração,
perda dos reflexos, irritação permanente, insegurança quanto a eficiência dos
atos, embaraço nas conversações, perda da inteligibilidade das palavras e
impotência sexual...O ruído pode dificultar o adormecer e causar sérios danos
ao longo do período de sono profundo proporcionando o inesperado despertar.
Níveis de ruído associados aos simples eventos podem criar distúrbios
momentâneos dos padrões naturais do sono, por causar mudanças dos estágios leve
e profundo do mesmo. A pessoa pode sentir-se tensa e nervosa devido à ausência
do repouso decorrente das horas não dormidas. O problema está relacionado com a
descarga de hormônios, provocando o aumento da pressão sangüínea, vaso-constrição,
aumento da produção de adrenalina e perda de orientação espacial momentânea
(ZORZAL, BRUNS e TONIN et al, 2003;
p. 14-15).
Aqui,
no caudal do art 30 da Lei 6938/1981, compreenderemos por ‘meio
ambiente’ todo o espaço natural ou construído que represente o conjunto de
condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica,
permitindo, abrigando e regendo a vida em todas as suas formas. Ainda sob os
auspícios do mesmo artigo, temos que:
I - ...
II - degradação da qualidade ambiental [é] a alteração
adversa das características do meio ambiente;
III – poluição [é] a degradação da qualidade ambiental
resultante de atividades que direta ou indiretamente:
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da
população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e
econômicas;
c) afetem desfavoravelmente a biota;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio
ambiente;
e) lancem matérias ou energia em desacordo com os
padrões ambientais estabelecidos;
A
Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3688/41) é mais incisiva ao abordar o
tema, motivando o entendimento de que o ruído sequer precisa estar acima dos
limites em decibéis previstos pela NBR 10151 para que a contravenção se
tipifique, por ser a perturbação do sossego uma interpretação subjetiva e
contextual. O referido Decreto assim tipifica a contravenção:
Art. 42. Perturbar alguém o trabalho ou o sossego
alheios:
I – com gritaria ou algazarra;
II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em
desacordo com as prescrições legais;
III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais
acústicos;
IV – provocando ou não procurando impedir barulho
produzido por animal de que tem a guarda.
É
notório o fato de que reclamações diversas são, frequentemente, realizadas por moradores
de redondezas achacadas por esse mal, contra estabelecimentos incômodos, junto
às agências de controle ambiental e de postura (a Agência Municipal de Meio
Ambiente de Goiânia-AMMA é um exemplo concreto), inclusive com extensos abaixo-assinados,
sem que se surta qualquer efeito, sob a alegação dos (mau medidos ou
dimensionados) decibéis, sendo injustificada e incoerente a concessão de
autorização de funcionamento para estabelecimentos ruidosos, sem as condições
necessárias e, por vezes, em locais que outros estabelecimentos semelhantes
foram embargados pelos mesmos motivos.
Sob o crivo dos princípios aqui evocados, devem estar colocados, também, os ruidos advindos de som automotivo ou residencial, cuja emissão é, igualmente, perturbadora e necessita ser coibida e reduzida a padrões aceitáveis de saúde, demandando as sansões cabíveis aos seus produtores. Não há que se falar aqui, assim como também no caso dos estabelecimentos comerciais, de repressão da cultura ou do direito subjetivo de acesso a ela, pois não existe relação nomológica entre o volume ou recorrência de ruídos e a sobrevivência de determinado elemento cultural, sendo o culto ao barulho e o desrespeito ao sossego e à paz alheios um subproduto da indústria cultural de massa. Talvez possamos, apenas, referir a baixa escolaridade e a classe social à preferência por conteúdo musical de reduzida qualidade poética e filosófica, na qual letras e melodias de fácil digestão se concentram em torno de temas com pouco ou nenhum conteúdo crítico ou reflexivo mais elaborado ou metafórico sobre o mundo. Como nos traz uma pesquisa do IBOPE (http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Documents/tribos_musicais.pdf) sobre tribos musicais, o sertanejo, o pagode, o funk e o gospel dominam absolutos nas preferências das classes C, D e E, sendo as baladas noturnas e a socialização nesses ambientes a tônica na diversão desse público. Contudo, apesar da maior tolerância das classes baixas ao ruído, não podemos afirmar que o volume da música seja fator determinante em sua manutenção como elemento cultural com maior ou menor acessibilidade ou perenidade social, ou que a luta pela redução de ruidos sonoros musicais se configure como uma defesa ou privilégio a este ou àquele gênero musical.
Tendo
por referência todo o arcabouço legal e teórico citado, assim como a
responsabilidade social de nossos órgãos de controle e sob o conceito ampliado
de ‘meio ambiente’ encetado pela Lei 6938/81 e já há muito adotado por diversos
estudiosos (HOLZER, 1997)[3],
partilho da crença de que nossos representantes políticos devem prezar pela qualidade
de vida de seus eleitores, acima do lucro financeiro, e que todo cidadão deve
requerer as providências cabíveis, a fim de preservar a paz, o sossego e a
saúde dos indivíduos de uma comunidade, sugerindo, para isso, a adoção de
dispositivos como a Lei Federal 6514/2008 (evocada, em Goiânia, pelo Decreto
Municipal 2149/2008), a fim de estabelecer os procedimentos, as infrações e
sanções administrativas para proteção do meio ambiente, considerando infração
administrativa ambiental, toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de
uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente e que resultem ou
possam resultar em danos à saúde humana, no curto, médio e longo prazos.
[1] ZORZAL,
Fábio Márcio Bisi; BRUNS, Rafael de; TONIN, Ana Karina et al. Estudo do ruído frente á legislação ambiental municipal da cidade de
Curitiba. Congresso
Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental n. 22; V Feira Internacional de
Tecnologias de Saneamento Ambiental, Joinville-14-19 set/2003. In: AIDIS;
Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental. Saneamento
Ambiental: Etica e Responsabilidade Social. Joinville, ABES, set. 2003. p.1-23.
[2] NEGRÃO, Alexandra
Maria Goes. Urbanização e Poluição Sonora: estudo de caso sobre os efeitos
extra-auditivos provocados pelo ruído noturno urbano. (Dissertação. Mestrado). Universidade
da Amazônia. Programa De Mestrado Em Desenvolvimento E Meio Ambiente Urbano.
Belém, 2009. [http://www6.unama.br/mestrado/]
[3] HOLZER,
Werther. Uma discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem e lugar,
território e meio ambiente. Rev.
Território, ano II, n. 3, 1997.
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