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quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Uma análise ética na perspectiva da Moral Luck

Por Walner Mamede Jr.


Debate realizado por e-mail com Júlio Cézar Ramos Esteves, Doutor em Filosofia pela UFRJ, Pós-Doutor pela Michigan State University, Professor Associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF, membro do corpo editorial dos periódicos Cadernos de Filosofia Alemã,Studia Kantiana e Crítica e autor de livros e diversos artigos nas áreas de Ética, Filosofia Política e Epistemologia.
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O conceito de Moral Luck, introduzido por Bernard Williams e desenvolvido por ele e Thomas Nagel em seus ensaios, descreve as circunstâncias em que a um agente moral é atribuída a culpa ou o mérito por uma ação ou por suas conseqüências, embora o referido agente não tenha controle total sobre a ação ou seus resultados.  Neste debate, o Professor Júlio Esteves responde às questões propostas por mim, lançando mão deste conceito à luz dos escritos de Kant. A questão posta a partir dos casos abaixo motivou o debate:
  • Caso 1: Motorista não faz revisão dos freios e, por isso, mata criança atropelada.
  • Caso 2: Motorista faz revisão nos freios e evita atropelamento
  • Caso 3: Motorista faz revisão nos freios e não evita atropelamento, matando a criança.
  • Pergunta-se: Quem é uma pessoa melhor dentre os 3 motoristas?

Walner Mamede: Ao considerarmos os exemplos dos motoristas citados tanto pelo senhor quanto por Nagel, o que deveria ser avaliado não seria a existência ou não da intenção de atropelamento (boa ou má vontade)? A negligência ou não com o freio não implica, necessariamente, na intenção de atropelamento e, assim, não poderia ser a variável segundo a qual o motorista deveria ser julgado, pois, no extremo, aquele que foi negligente com o freio e atropelou a criança poderia ser mais resistente à idéia de atropelamento que qualquer um dos outros dois motoristas. Inclusive, a noção de uma boa ou má vontade, nesse caso, estaria diretamente relacionada com a idéia de que a vida é sagrada e não pode ser interrompida ou com a compreensão do sofrimento que isso poderia causar a terceiros.
Prof. Júlio Esteves: Quando você pergunta pelo “que deveria ser avaliado” nos exemplos dos motoristas citados tanto por mim quanto por Nagel, qual seria o ponto de vista dessa avaliação: o jurídico-penal ou o puramente moral? Pergunto isso, porque me parece que o próprio Nagel oscila entre os dois pontos de vista na avaliação desse exemplo, o que me parece problemático. Pois, como aprendi com Kant, o direito, por sua própria natureza, em contraposição à moral, se atém primariamente à conformidade externa de uma ação à lei, pouco ou nada importando a motivação interna, que constitui justamente o foco da moral. Para exemplificar, se tanto o direito quanto a moral proíbem que se mate, o primeiro exige apenas que as pessoas ajam externamente em conformidade com essa lei, pouco importando se o que as move é o medo das conseqüências ou a compreensão de que é um dever em si mesmo respeitar a vida de outra pessoa, mesmo que surja uma oportunidade de tirar a vida de alguém sem a ameaça de ser punido por isso. Já a moral exige que este mero pensamento de que é um dever, de uma maneira completamente independente das possíveis ou reais conseqüências, más ou boas, neste ou em outro mundo qualquer, seja o motivo interno exclusivo da ação (de não matar o próximo), se tal ação deve possuir autêntico valor moral.
Desse modo, do ponto de vista da moral, o que deve ser avaliado é a intenção, a motivação interna, de atropelar, como você próprio escreveu. Mas, ainda do ponto de vista da moral, essa intenção de atropelar ou tal má intenção pode ser atribuída a um agente pelo simples fato de que ele não cumpriu com o seu dever, a saber, o dever de checar os freios. Nesse sentido, não posso concordar com você, quando diz que “a negligência ou não com o freio não implica, necessariamente, na intenção de atropelamento”, pois, pergunto: que boa intenção poderia ter uma pessoa que sai circulando por aí consciente de que os freios do carro não estão confiáveis? É como se ela dissesse para si mesma: “não quero matar ninguém, mas também não estou com vontade de regular os freios; os outros que façam sua parte, os outros que se cuidem e não passem na minha frente”!!!!!  Isso seria extrema má-fé. Essa pessoa, do ponto de vista moral, só por pensar assim, independentemente de vir ou não a matar alguém, já é censurável.
Do ponto de vista do direito, como este último está primariamente atento ao lado externo da ação, haverá, de fato, como pretende Nagel, uma diferença de avaliação, dependendo da “sorte ou do azar” do motorista imprudente:  se ele não vier a matar alguém, receberá uma repreensão bem menor (talvez uns pontos na carteira) do que receberá, se vier a matar alguém. Contudo, do ponto de vista moral, que Nagel parece não compreender, nossa censura ao motorista imprudente será igualmente rigorosa, independentemente das conseqüências. (Do ponto de vista moral, os nazistas não teriam sido avaliados diferentemente, caso tivessem matado somente 6, e não 6 milhões de judeus, embora isso faça diferença do ponto de vista jurídico).
Walner Mamede: Pensando em uma realidade hipotética, na qual a vida é algo banal e sua sacralidade sequer considerada, a avaliação do atropelamento se equivaleria àquela que fazemos quando insetos se espatifam em nosso para-brisa, independentemente da situação dos freios. O motorista apenas sentirá ‘ressaca’ moral se não havia intenção potencial de atropelar, independentemente da revisão dos freios. Por exemplo, considerando dois motoristas em tudo iguais, a não ser no que concerne à sua preocupação com freios, sua reação moral será idêntica. Não sendo, implica em que um possuía uma ‘intenção potencial’ de matar e isso redunda na conclusão de que sua vontade não era boa e, portanto, reprovável moralmente.
Prof. Júlio Esteves: Do ponto de vista moral, a negligência com os freios, por si só, já é manifestação de uma intenção potencial de matar. Na verdade, creio que mesmo na avaliação jurídica do caso poder-se-ia falar em “assumir o risco de matar alguém”.
Walner Mamede: A avaliação do motorista não deveria ser realizada pela perspectiva de quanto ele preza a vida de terceiros e por quanto ele se arrepende de ter atropelado (essa seria uma avaliação indireta da intencionalidade, já que, no momento do atropelamento, as reações são muito mais instintivas que racionais, não estando presente a intenção propriamente dita, mas uma ‘intenção potencial’)? Isso nos desloca novamente para uma perspectiva kantiana, acredito eu. Contudo, na lida com o mundo, a intenção (pois como dizem, ‘de boas intenções o inferno está cheio’) importa menos que os resultados objetivos da ação, pois a boa vontade pode estar assentada em um erro de julgamento do indivíduo e produzir resultados desastrosos (exemplo dos pais que superprotegem seu filho com a melhor das intenções e ele se torna egoísta e egocêntrico a ponto de cometer crimes para satisfazer suas vontades) e ele estaria sendo julgado não por sua vontade, mas por sua incapacidade de produzir juízos corretos e prever resultados, em última instância, por sua incompetência no uso da racionalidade. Talvez aí esteja o mérito de Nagel.
Prof. Júlio Esteves: Concordo com você quando afirma que a presença de arrependimento e a consideração da intenção nos colocam na perspectiva kantiana e admito também que você está coberto de razão quando afirma na seqüência que “na lida com o mundo, a intenção (pois como dizem, ‘de boas intenções o inferno está cheio’) importa menos que os resultados objetivos da ação, pois a boa vontade pode estar assentada em um erro de julgamento do indivíduo e produzir resultados desastrosos”. De fato, esse é um problema para a posição kantiana.
Nas minhas aulas de filosofia, costumo dizer para meus alunos que podemos distinguir, grosso modo, duas atitudes da filosofia relativamente ao assim chamado senso comum, curiosamente, ambas originadas em Platão. A primeira seria a que eu chamaria de “elitista”, segundo a qual a filosofia, enquanto ciência ou saber verdadeiro, significaria um rompimento total com o senso comum, com a opinião (em grego, dóxa). A segunda atitude, para a qual não tenho um nome, veria a filosofia antes como uma atividade de esclarecimento e de análise de um saber ou conhecimento “desde sempre” presente no homem comum. Essa posição pode ser ilustrada da maneira a mais intuitiva numa interessante passagem das Confissões de Santo Agostinho, um filósofo muito influenciado por Platão. Ele pergunta mais ou menos assim: “O que é o tempo? Quando não me perguntam, sei o que é; quando me perguntam, não sei mais dizer o que é.” O que Santo Agostinho quer dizer é que todos nós temos um conhecimento do que seja o tempo, pois, afinal, até mesmo crianças de 5 anos já fazem simples distinções temporais, mas se perguntarmos a quem quer que seja o que é isso, o tempo, ou seja, qual é a sua natureza, caímos em grandes dificuldades. E é aí, para tentar responder a uma pergunta como essa, que entra a filosofia. Mas se o filósofo consegue chegar a alguma resposta sobre essa questão da natureza do tempo, por exemplo, ele não terá, por assim dizer, ensinado propriamente nada de novo ao homem do senso comum, mas, sim, apenas esclarecido ou trazido à luz algo que todos nós de algum modo sempre já sabíamos acerca do tempo, só não sabíamos que sabíamos. Por isso, eu chamaria de não-elitista essa segunda atitude do filósofo relativamente ao senso comum.
Isso tudo é para dizer que, dentre essas duas atitudes, Kant se situa na segunda, e eu, pessoalmente, concordo com ele. Kant pensa que a tarefa da filosofia consiste justamente numa análise e elucidação de certos conceitos e conhecimentos que todo homem, mesmo o homem do senso comum, possui, só que de uma maneira vaga e não plenamente consciente. Pois, o que Santo Agostinho disse sobre o tempo vale também para a moral: todos nós sabemos o que é moral, pois fazemos juízos morais o tempo todo, mas, se nos perguntam por esse conceito, caímos em dificuldades. Segundo Kant, se prestarmos atenção no conceito de moralidade subjacente aos juízos morais feitos pelo homem comum, veremos que o valor moral de uma ação e, em última análise, do próprio agente, deve ser buscado inteiramente nas suas boas intenções, na sua boa vontade. Isso vem ao encontro do dito ou máxima presente na sabedoria popular; “o que vale é a intenção”. Contudo, e aí vem a sua objeção, pertence também à sabedoria popular o dito segundo o qual “de boas intenções o inferno está cheio” e a filosofia moral de Kant, na medida em que pretende esclarecer o senso moral do homem comum, tem de poder dar conta também desta última máxima.
Eu admito que Kant é um tanto exagerado ao recusar que as conseqüências de uma ação, por ser algo que escapa em grande medida ao controle do agente, não deva entrar em linha de conta na nossa avaliação do valor moral desse agente. Na verdade, quando dizemos que a mera negligência por parte do motorista é algo em si mesmo moralmente censurável, não o fazemos justamente por causa das conseqüências a que pode levar tal negligência? Pois não é um dever moral e não constitui o valor moral de um agente o refletir bem sobre as conseqüências de suas intenções uma vez transformadas em atos? Como diz você, o mérito de Nagel talvez tenha consistido em ter chamado a atenção para o outro pólo da ação, para as conseqüências, um tanto ou quanto negligenciadas por Kant. Mas eu acredito que Kant ainda pode dizer que tem razão o dito popular segundo o qual “o que vale é a intenção”, muito embora seja verdade, de outro lado, que “de boas intenções o inferno está cheio”. Mas o último dito só vale para intenções aparentemente boas, e não para intenções verdadeiramente boas. Vou tentar explicar isso.
Eu me lembro de ter enviado a você um texto mais longo, mas não me lembro se discuti nele uma objeção feita ao conceito kantiano de boa vontade, segundo a qual não seria claro por que razão a boa vontade por si só possuiria um valor com o qual não se poderia comparar nenhuma outra coisa, por exemplo, nenhuma qualidade, como a inteligência ou argúcia de espírito. Os críticos de Kant argumentam que ele só consegue preservar esse incomparável valor de uma boa vontade por meio de artifícios ‘ad hoc’. Tomemos, por exemplo, a figura de Maria Antonieta, supondo que ela tenha mesmo proferido a infame frase: “se os pobres não têm pão, que comam brioches!”. Ora, segundo os críticos, Kant talvez fosse forçado a dizer que a frase de Maria Antonieta indica que ela era uma pessoa de boa vontade, uma pessoa bem intencionada, só que estúpida ou ignorante quanto à miséria por que passava o povo francês. Ou seja, sua intenção propriamente dita era boa, o que estragava Maria Antonieta era outro componente da situação, a saber, sua estupidez e ignorância.  A esse tipo de coisa, o senso comum responde com sabedoria: de boas intenções como essa, o inferno está cheio. Só que, se entendo Kant corretamente, Maria Antonieta não era verdadeiramente uma pessoa de boa vontade, porque uma pessoa de boa vontade em sentido próprio não pode ser estúpida. Pois é incompatível a existência de uma boa vontade numa pessoa que está à frente dos destinos do povo, como ela estava, com uma ignorância quanto à realidade desse povo. Era uma obrigação moral para ela saber da situação real de seu povo. Por conseguinte, sua estupidez e alienação era moralmente censurável. Do mesmo modo, “pais que superprotegem seu filho com a melhor das intenções e ele se torna egoísta e egocêntrico a ponto de cometer crimes para satisfazer suas vontades”, como escreveu você, são moralmente censuráveis, porque eles têm o dever moral de avaliar e refletir sobre o sentido da (des)educação que estão dando a seu filho. Até porque, exemplos disso é que não faltam. Se eles fecham os olhos a isso, estão procedendo exatamente como Maria Antonieta, que fechou intencionalmente os olhos para a pobreza de seu povo, para se contentar com uma auto-imagem de pessoa de boa vontade e bem intencionada.  De boas intenções assim, de fato, o inferno está cheio!!!
Walner Mamede: De outro lado, temos o exemplo do carrasco nazista. Ele foi submetido a condições materiais das quais não poderia fugir sob o risco de ameaçar a própria vida. Assim, despejou sobre seus prisioneiros toda a violência característica do nazismo. A situação foi objetiva, segundo Nagel, mas qual o verdadeiro sentimento do carrasco em relação ao que fazia? É conhecida e história (não me lembro bem como é) de uma carta que um agente nazista encaminhou para seus pais lamentando-se por sua conduta reprovável e desculpando-se, mas justificando-a pelo fato de que, se assim não o fizesse, estaria colocando em risco não apenas sua própria, mas a vida de seus familiares. Também há o que Hanna Arendt argumentou sobre o julgamento, em Jerusalém, no ano de 1961, de Adolf Eichmann, o nazista que afirmou, em sua defesa, apenas estar cumprindo ordens. Como julgar nesse caso? Subjetiva ou objetivamente? As intenções do indivíduo o redimem de seus atos, independentemente dos resultados? Um indivíduo ‘bom’, como eu acredito que seja o caso, pode produzir ‘resultados ruins’ e vice-versa? E o que acontece com ‘a árvore se conhece por seus frutos’? Uma árvore que só dá frutos ruins pode ser boa? Assim sendo, não merece ser reprovada?
Prof. Júlio Esteves: Você argumenta, muito persuasivamente, aliás, que, se o que conta é a intenção, como sustenta Kant em concordância com o dito comum, então talvez o nazista que se vê forçado a cumprir ordens criminosas pudesse continuar mantendo uma auto-imagem moralmente positiva, alegando para si mesmo que só fazia isso para não expor a si e à sua família ao perigo de represálias. Essa situação nos coloca diante do problema da liberdade e de seus limites. Sem dúvida, há situações em que somos forçados a agir de maneira totalmente contrária a nossos princípios morais, visando evitar males maiores. Durante a Segunda Guerra mesmo, muitos nazistas, exercitando seu sadismo, muitas vezes forçaram pais e mães a escolherem qual dos filhos deveria morrer para salvar os outros. Que as circunstâncias objetivas limitam nosso âmbito de escolha é inegável. Mas não creio que seja esse o caso do agente nazista a que você se referiu. Era possível, objetivamente falando, fazer diferente, e muitos alemães só não o fizeram, porque compactuaram com o regime. Prova disso pode ser encontrada em pessoas como aquele empresário do excelente filme ‘A Lista de Schindler’. É verdade que o filme deixa em aberto se o que moveu o sujeito teria sido a intenção de salvar quantas vidas fosse possível, o que conferiria valor moral ao seu gesto, ou se o interesse do lucro seria não apenas uma simples fachada para ludibriar os nazistas, mas o real motivo de ações aparentemente altruístas. Mas o fato é que Schindler, em certa altura, fez coisas que o interesse no lucro não podiam explicar, uma vez que até colocavam em risco sua vida. E eu creio que é sempre possível não compactuar com ações ordenadas por um regime moralmente reprovável, salvo em casos extremos, como quando nos obrigam a matar alguém para não matarem nossa família.
Já o caso dos nazistas que durante o julgamento de Nuremberg afirmaram a própria inocência sob a alegação de estarem “apenas cumprindo ordens superiores”, embora, curiosamente, o mais das vezes tivessem ocupado eles próprios os cargos mais altos na cadeia hierárquica, creio que a análise magistral feita por Hannah Harendt em seu Eichmann em Jerusalém é insuperável. Desse modo, sou inclinado a julgar que nem o agente nazista inferior na escala hierárquica e que disse lamentar o que teve de fazer, e nem muito menos os seus superiores hierárquicos que pretenderam se desculpar de seus crimes alegando estarem só cumprindo ordens, podem ser, sob qualquer ponto de vista, considerados como pessoas de boa vontade. Pois, para usar uma frase sua, mas na negativa, “um indivíduo ‘bom’ (...) nãopode produzir ‘resultados ruins’ (...). Ou seja, uma boa vontade não pode produzir ações más, pelo menos no que tange à sua intenção, que é o que está, estritamente falando, em seu poder. Mas como as ações provenientes de uma boa vontade se desenrolam no mundo e como o mundo é independente dessa boa vontade, pode muito bem ocorrer que boas intenções acabem resultando em conseqüências más, desde que fossem originalmente imprevisíveis, porque, se pudessem ter sido previstas, diremos que a pessoa em questão as deveria ter levado em conta e que, portanto, não era uma pessoa de tão boa vontade assim.
Mas, como podemos saber se uma pessoa tem boa vontade? Nas suas palavras: ‘uma árvore se conhece por seus frutos’? Bem, em parte, sim. Pois, para Kant, uma boa vontade não se reduz ao mero ter boas intenções vazias, sem jamais fazer todo o esforço sincero no sentido de realizá-las. E isso é algo que nós verificamos no dia-a-dia. Pois as pessoas fazem, naturalmente, um excelente conceito de si mesmas e geralmente se atribuem qualidades como coragem ou desprendimento, por exemplo. Só que a presença real dessas qualidades numa pessoa é mais facilmente detectável da perspectiva de um observador externo, ou seja, das ações e comportamentos efetivos, do que da perspectiva do próprio ator. E, de fato, muitas vezes somos forçados a chamar a atenção daquele que se diz corajoso para as ocasiões em que ele foi o primeiro a fugir de perigos reais ou aparentes, ou lembrar àquele que se diz desprendido sobre as ocasiões em que se mostrou uma pessoa extremamente egoísta e materialista. Contudo, uma pessoa pode ter uma boa intenção e envidar todos os esforços no sentido de realizá-la, sem, contudo, ter sucesso nisso, não por qualquer falha sua, mas por forças além de sua vontade, e, apesar dos resultados ou das conseqüências não alcançados, ser considerada, ainda assim, uma pessoa de boa vontade. É o caso, por exemplo, de uma pessoa que se joga no mar para salvar alguém, mas que fracassa em seu intuito, em virtude da força das ondas.
Walner Mamede: Não ficou clara para mim a última questão: uma árvore que só dá frutos ruins pode ser boa? Assim sendo, não merece ser reprovada? Penso que, nesse caso, poderíamos argumentar que nada adiantaria cortá-la e plantar outra no lugar, pois o solo seria o grande culpado e isso salvaria Kant. Consideremos as várias situações possíveis:
Possibilidades
Índole
Circunstância
Resultado
Situação A
0
0
0
Situação B
0
1
0
Situação C
0
0
1
Situação D
0
1
1
Situação E
1
0
0
Situação F
1
1
0
Situação G
1
0
1
Situação H
1
1
1
Onde ‘0’ = ‘ruim’ ou ‘desfavorável’ e ‘1’ = ‘bom’ ou ‘favorável’, sendo ‘Índole’ um descritor para a vontade, conforme o índice ‘0’ (‘má’) ou ‘1’ (‘boa’).
Como determinar o valor moral do indivíduo nessas diferentes situações? No meu entender, é preciso relativizar índole, circunstância e resultados no julgamento de um indivíduo e avaliar a possibilidade de ele produzir resultados diferentes na mesma circunstância. Nem tanto a Kant, nem tanto a Nagel.
Prof. Júlio Esteves: Uma árvore, ou seja, uma vontade que só dá frutos ruins, não pode ser boa, só que, diferentemente de uma árvore, que está, por sua própria natureza, inelutável e estaticamente presa a seu solo ruim e só pode sair dali levada por alguém, uma vontade é, também por sua natureza, uma espécie de agente causal, por conseguinte, tem um aspecto dinâmico, e não pode se desculpar por suas ações más lançando a culpa sobre solo em que estaria “fincada”, a saber, nas circunstâncias históricas, sociais, psicológicas ou mesmo de ordem genética. A vontade, segundo Kant, é responsável, em grande medida, pelo “solo” em que “se fincou”.

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