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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Já se perguntou?

Por Vinicius Mamede S. Chaer

Certamente muita gente já se perguntou como realmente as coisas acontecem. A questão muito provavelmente intriga ateus e também religiosos mais atenciosos. “Acontecem por ‘vontade’ de Deus”, diria qualquer pessoa de fé. Mas, mesmo para os que creem, como exatamente se manifestaria a vontade divina? Ao longo da história, a humanidade foi desvendando mistérios do espaço, da matéria e da vida. A certa altura tornou-se crucial a compreensão do funcionamento subatômico, porque ele é, de fato, a mais essencial das respostas sobre como as coisas se dão no mundo físico, onde tudo o que existe é feito de partículas. Imprescindível também, caso se queira repostas tão fundamentais, é o estudo da mente: o funcionamento do cérebro humano, a mais espetacular das máquinas, e os limites de sua relação com a física.

Voltando a tempos pré-iluministas, dois dos grandes atores do racionalismo filosófico, o francês Renê Descartes e o holandês Baruch Espinosa divergiram quanto à concepção de mundo. Para o primeiro havia a transcendência: o todo era dividido entre o mundo físico e o mental/espiritual. Portanto, para Descartes, a mente humana, algo intangível e transcendente, influía no mundo físico e era por este influenciada, mas essencialmente de modo independente. Espinosa, por seu lado, concebia o mundo da imanência, visão que insere até mesmo o pensamento na realidade física. O chamado monismo – contraposição ao dualismo de Descartes - do filósofo holandês definia Deus como sendo o todo, físico e mental/espiritual, resumido na palavra substância. Para Espinosa, a lei que regia o mundo da mente ou do espírito era a mesma que o fazia no mundo físico, ou seja, a lei da causalidade universal.

Causalidade – cadeia de causa e efeito, diferente de casualidade – pressupõe determinação: a cada acontecimento é atribuída uma causa, que por sua vez já fora efeito de outra causa. De certo modo, o efeito está contido na causa e apenas “aguarda” qualquer lei natural, além do curso do tempo, para acontecer. Com efeito, conhecendo-se todas as variáveis de um sistema qualquer, nesta concepção determinista é possível antever o futuro.

Sobre o aspecto transcendente da mente humana, renascido modernamente do pensamento cartesiano, alguns séculos depois de Descartes algumas dúvidas essenciais ainda pairavam – e pairam! - sobre as teorias do pensamento, especialmente aquelas que gravitavam entorno do Behaviorismo, a teoria do comportamento. Até que ponto as imagens e significados da mente, inclusive os mais subjetivos, poderiam ser expressos no comportamento, e, mais além, redutíveis à matéria, à bioquímica? Behavioristas foram revistos e criticados, especialmente por linguistas no século XX, que propunham maior atenção à subjetividade. Já Antônio Damásio, contemporâneo e importante neurologista português, tem obra destacadamente defensora da redutibilidade acima citada sem necessariamente desconsiderar as subjetividades da mente.

Damásio, em seu famoso livro “O erro de Descartes”, descreve experimento inicialmente acidental, de um operário gravemente ferido na cabeça e milagrosamente recuperado sem danos motores ou cognitivos, mas que em seguida apresentou alterações de caráter: tornou-se, de acordo com todos os que o cercavam, pessoa pouco confiável, de poucos valores, bem diferente do que fora a vida toda. Estava comprovada a influência da bioquímica cerebral em variáveis psíquicas, inclusive algumas relacionadas ao caráter e à moral, antes atribuídas a fenômenos espirituais, ou ao menos estritamente subjetivas. É possível afirmar que Damásio trouxe Baruch Espinosa à tona por meio de seu trabalho científico, ainda que distante, obviamente, de modelos acabados de determinismo ou materialismo psíquicos.

A física do século XX, quase sempre revolucionária e um tanto avessa à intuição humana, foi assombrada pelas descobertas das teorias quânticas, como o Princípio da Incerteza. A descoberta do físico alemão Werner Heisenberg demonstrou que o comportamento das partículas no interior de um átomo não obedece qualquer determinação previsível ou explicável pela mecânica até então conhecida, mesmo pela Teoria da Relatividade, como seria de se esperar – previsibilidade - na lei da causalidade. Algumas das curiosas descobertas mostraram também que são praticamente impossíveis aferições e observações mais precisas e completas que não interfiram no comportamento das partículas.

O indeterminismo, que já se alastrava pelas ciências naturais, foi aos pouco sendo compreendido - ou domesticado - pela já velha teoria matemática das probabilidades, com contribuições importantes do físico alemão Max Born na altura do século XX. A probabilidade, de certo modo, torna possível um relativo “controle de resultados” ao se lidar com indeterminações e com o acaso. O um exemplo clássico, e que alude de modo simples a ideias complexas, é o caso do lançamento de uma moeda – cara ou coroa -, do qual se conclui que ao final de vários lançamentos a expectativa é que dê aproximadamente metade cara e metade coroa, mas nunca se sabe com certeza de que lado cairá a moeda num lançamento específico. Contudo, foi numa carta endereçada a Born que o grande Albert Einstein, um determinista e espinosano quase convicto, incluiu a famosa frase “Deus não joga dados”.

Probabilismo ou determinismo? Voltemos ao século XVIII com o considerado pai da Teoria das Probabilidades, o matemático francês Pierre Simon de Laplace, que elaborou, na forma de uma hipótese mental, sobre a existência de um demônio – não no sentido místico e maligno do termo -, o Demônio de Laplace, que por sua vez seria demasiadamente sabido. Sua capacidade seria tão grande, tão universal, que conseguiria conhecer todas as condições de qualquer objeto ou fenômeno, a qualquer tempo, em toda parte. Como também conheceria todas as leis da natureza, seria então capaz de prever toda e qualquer parte do futuro.

A sagacidade e intuição do velho Laplace nos fazem perguntar: 1) Não sabemos se dará cara ou coroa num lançamento específico porque estamos diante de uma possibilidade realmente aberta e provável ou simplesmente porque não somos capazes de calcular com absoluta precisão todas as variáveis do lançamento, tais como pesos, forças, tempos, distâncias, ângulos da moeda a cada instante, superfícies, etc.? 2) A probabilidade não seria apenas epistemológica, ou seja, pertinente ao espaço de alcance do conhecimento humano? 3) Albert Einstein estava correto ao desconfiar até certo ponto do indeterminismo, e ao demonstrar certo incômodo com as teorias quânticas?

A ciência contemporânea, sobretudo a física quântica, é muito mais probabilista do que determinista. E tem boas razões para isto. O impacto nas demais ciências, inclusive as biológicas e humanas, é enorme. No dia a dia, é bastante recomendável a compreensão das probabilidades, o que pode até contribuir com controle de ansiedades – como o medo de avião - e com escolhas mais sábias na vida ou na profissão. É interessante tentar se livrar de certa obsessão pela busca de nexo causal entre quaisquer eventos correlacionados. No entanto, não dá para descartar, se formos atentos à história da ciência, a possibilidade futura de qualquer outra grande virada na compreensão mais essencial do mundo físico, como em certa escala fez Damásio no estudo da mente, mal comparando.

Seria possível, um dia, além das tentativas bem sucedidas da interessantíssima Teoria do Caos, o casamento completo e definitivo da mecânica quântica com a relatividade, quem sabe, ainda mais além, recuando um tanto à visão determinista? Ou, por outro lado, seriam possíveis explicações que cabal e definitivamente reafirmem e expandam o probabilismo subatômico para fora do círculo epistemológico? Até aonde pode chegar o estudo da mente, suas conclusões sobre os limites da autonomia humana ao agir e sobre o alcance da relação de neurônios com imagens subjetivas, impactantes ou não no comportamento?

Segundo Karl Popper, filósofo de ciência austríaco do século XX, a verdade se alcança por lances sucessivos e nunca completamente. Contudo, ainda que não se tenha a utópica expectativa de uma “teoria de tudo”, muito menos definitiva, as perguntas do parágrafo anterior são fundamentais para quem, mais atento, percebe o impacto de tais questões – e das respostas que nos damos - no modo como vemos a vida, no real significado do livre arbítrio e, entre outras coisas importantes, no modo como concebemos a fé.