Walner
Mamede
O avanço da infraestrutura no
período militar é inegável, mas os custos desse avanço foram monstruosos, se manifestaram
apenas tardiamente, impactam o Brasil até os dias de hoje e exemplificam um
modelo irresponsável e inconsequente de Administração Pública, produzindo aumento
exponencial da dívida externa (em 20 anos, saiu de R$3,6 bi para R$93 bi), preocupantes impactos ambientais,
prejuízos sociais incalculáveis e absurda estagnação econômica. Em 1964, o
Brasil era o 45o PIB do mundo, subindo para 10a posição
durante o Governo Militar, contudo, mais uma vez, o custo foi imensurável. O
próprio Presidente Garrastazu Médici reconheceu isso ao afirmar “O Brasil vai
bem, mas o povo vai mal”, referindo-se ao aumento alarmante da desigualdade
social e da pobreza, trazidos pelo intenso arrocho salarial (ao final do Regime, o salário reduziu para a metade), a invasão de
capital estrangeiro, a remessa de divisas para o exterior e o acúmulo de
riquezas em faixas específicas da sociedade, que reduziu a inflação na primeira metade do Regime, chegando a alarmantes 223% ao seu final e, iatrogenicamente, diminuiu o poder de compra da grande maioria da população (mais de 50% de perda ao longo de 20 anos), com uma consequente
estagnação do mercado, que não se sustentava pelo alto consumo empreendido por
uma pequena faixa social privilegiada.
Segundo Jairo Falcão[1], “O
“milagre brasileiro” apoiou-se num tipo de crescimento econômico, priorizando a
desigualdade econômica e social. O próprio Delfim Neto prognosticou ‘crescer o
bolo para depois dividir’, e, por isso, o plano de desenvolvimento do grupo
civil-militar no poder baseou-se no aumento das taxas de lucros, na redução de
salários, na contenção do crédito, na redução da dívida pública e no
encolhimento das importações para conter o déficit externo”. Nesse sentido, a
Ponte Rio-Niterói, a usina de Anga, as hidrelétricas de Itaipu, Tucuruí,
Balbina, Ilha Solteira e Jupiá, os metrôs e quilômetros de estrada construídos,
o incremento da indústria siderúrgica, com o Projeto Grande Carajás, as
empresas e órgãos estatais criados e as políticas energéticas mirabolantes,
como o PróÁlcool e o enriquecimento de urânio, não conseguem justificar a conta
social, econômica e ambiental gerada e deixada de herança para os Governos
seguintes. Fazer obras e criar políticas é fácil quando a conta é paga por
terceiros!
Em adição a isso, precisamos
considerar os tropeços gerados pela megalomania inconsequente dos militares. As
usinas de Angra (cuja terceira etapa nunca chegou a ser finalizada pelos
militares, tendo sido um buraco sem fundo que consumiu muito dinheiro e retomada,
apenas, em 2008) e a hidrelétrica de Balbina, entre outros, são monumentos à
estupidez, que consumiram milhões e milhões de dólares, comprometeram extensas
áreas florestais, como a inundação provocada pela hidrelétrica de Balbina, e
não atendem minimamente as expectativas (Angra produz meros 1,57% da energia
consumida no Brasil e Balbina produz irrisórios 250 megawatts). A hidrelétrica
de Tucuruí foi foco de intensas críticas por ter desalojado várias comunidades e
destruído a fauna e flora locais com a extensa inundação provocada. Associado a
isso, existem os inúmeros escândalos de corrupção e prevaricação nos quais se
envolveram Angra, Itaipu, Tucuruí e Balbina, além dos gastos com royalties
compensatórios por perdas ambientais e uso dos recursos hídricos, que
giram em torno de 15% de suas receitas. Para Guilherme de Azevedo Dantas, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, “Tucuruí e Balbina são empreendimentos
onde os interesses energéticos ‘atropelaram’ questões ambientais”. Para
se ter uma ideia, segundo Robson Rodrigues[2],
em estudo publicado pela Editora Abril, em 2017, “Itaipu custou US$ 16 bilhões,
e sua dívida só será paga em 2023; Tucuruí alavancou US$ 3,7 bilhões; as usinas
de Angra 1 e 2 custaram, segundo a Eletronuclear, R$ 1,468 bilhão e R$ 5,108
bilhões; a Ponte Rio-Niterói, US$ 400 milhões, sendo US$ 88 milhões de
empréstimo externo com a condição de que o aço do vão central fosse comprado de
empresas inglesas”. A conta de todo esse impropério administrativo
desaguou nos anos 80, agravado pela crise do petróleo de 79, o que alimentou o
desejo dos militares em sair do Governo e deixar a conta para seus sucessores,
e se arrasta até hoje.
Podemos, ainda, lembrar da
Transamazônica, cuja construção consumiu milhões de dólares, custou a vida de 8
mil índios e de um número desconhecido de trabalhadores e colonos, provocou intensas
disputas agrárias, agrediu três ecossistemas (caatinga, cerrado e floresta),
ofereceu condições precárias de trabalho, nunca atendeu ao que se propunha e nem
teve seu último trecho construído, tudo isso por ausência de planejamento, de estudo
de viabilidade econômica, de responsabilidade social e de declarações e propagandas
ufanistas, exageradas e inconsequentes dos militares, que produziram situações
complicadas e preocupantes, como migração descoordenada, disputa de terras,
garimpos ilegais, problemas de saúde pública e insegurança social nas áreas de
ocupação, o que, inclusive, levou à desmotivação de colonos para se fixarem na
região. Para Delfin Neto, “A Transamazônica foi um erro produzido pela
ignorância de imaginar que a Amazônia fosse um território rico”. A Transpantaneira
e a Perimetral Norte não tiveram histórico diferente da Transamazônica e
respondiam, conjuntamente a outros projetos de expansão da malha rodoviária e desmonte
dos modais ferroviário, fluvial e marítimo, a um pressuposto básico trazido pela
Escola Superior de Guerra, conforme Jairo Falcão[3]: “desenvolvimento
de acumulação capitalista, baseado na indústria de bens duráveis, entre elas, a
automobilística”, com o consequente aumento de incentivos e facilitações de
crédito para a aquisição de caminhões e criação de transportadoras rodoviárias.
Ainda segundo Falcão, as estradas de ferro, no ano de 1972, foram reduzidas em 7.419
km, do total de 10.795 km e a preocupação dos militares foi muito mais com a
expansão do que com a recuperação e conservação da malha rodoviária já
existente. O investimento nesse projeto foi de mais de 4% do PIB, enquanto que
nos setores ferroviário e marítimo juntos orbitou em torno de meros 1%. Tal
política produziu graves problemas com o disparo do preço do petróleo a partir
de 74 e a exacerbação da crise a partir de 79, forçando o Governo a reduzir,
drasticamente, o investimento na expansão rodoviária, sem investimento
compensatório equivalente em outras modalidades de transporte, produzindo seu
estrangulamento e encarecimento, e favorecendo empresas estrangeiras
no setor marítimo, por meio de normas da SUNAMAM que privilegiavam o perfil
dessas empresas, em detrimento de características próprias de empresas
brasileiras, segundo a revista Portos e Navios, em janeiro de 79.
Se enveredarmos pelo campo da
Educação (e nem falaremos do INAMPS e da Saúde aqui, cujo caos criava esperas
intermináveis que obrigavam aos doentes dormirem nas longas filas, aguardando
atendimento, e fomentavam a venda de lugares, sendo um sistema público restritivo,
destinado apenas aos que possuíssem relações formais de emprego) a situação é
mais preocupante. A afirmação mais comum, atualmente, é que a escola do passado
ensinava melhor e que os professores eram respeitados pelos alunos. Se considerarmos
que até meados dos anos 50 a escola era ambiente destinado a pessoas de classe
média e alta, que as crianças possuíam já no lar as primeiras referências de um
mundo letrado e instruído, pois seus pais possuíam esse nível de educação, que
suas famílias eram bem estruturadas e possuíam mães presentes em tempo integral
na vida da criança e que isso faz toda a diferença no desempenho escolar, pois
a criança já chega na escola com um rico repertório educacional, é
compreensível o equívoco da afirmação, que confunde causa com efeito. Na
alfabetização, por exemplo, a criança precisa compreender que os traços que
fazemos no papel representam sons, antes de começarem a decodificar a relação
grafema-fonema, própria do método fônico e, se isso se dá a partir de contextos
e objetos já conhecidos e de interesse da criança, a alfabetização é muito mais
eficiente. Conforme Magda Becker Soares, professora da Universidade Federal de
Minas Gerais, em entrevista à Nova Escola[4],
nas famílias escolarizadas, essas etapas acabam ocorrendo espontaneamente antes
mesmo de a criança entrar na escola e é isso que promove o equívoco comum de
comparações esdrúxulas entre escolas elitizadas e aquelas que atendem alunos
das camadas populares. As realidades prévias, os pontos de partida são muito
desiguais e não permitem esse tipo simplista de comparação, seja entre presente
e passado, seja dentro do presente.
Nos anos 60 e 70 a realidade das
escolas públicas começou a mudar, mas foi com a Constituição de 88 que a
universalização da Educação permitiu a entrada massiva de alunos das classes
populares na escola e isso criou um desafio tanto social, quanto pedagógico e
financeiro, pois o aumento explosivo do quantitativo não foi acompanhado pela
qualificação de professores, pela teoria didática e pela infraestrutura, mas,
em compensação, permitiu o acesso e permanência a milhares de pessoas que
estavam fora da escola, dando-lhes chances, antes, inimagináveis e, com isso,
todos os muitos problemas de desigualdade social tramitaram para dentro da
escola pública, levando os filhos de famílias mais abastadas a migrarem para as
escolas privadas. Então, referendar a realidade escolar do período militar como
benchmark, momento em que a abertura da escola estava apenas se iniciando muito
timidamente, é desconsiderar todo o contexto social e educacional da época equiparando-o
ao atual. Equívoco semelhante se dá ao compararmos escolas públicas militarizadas
atuais às civis. A aparente melhor eficiência das escolas militarizadas apenas
ocorre porque elas realizam processos seletivos severos que privilegiam as camadas
mais elitizadas e excluem as mais populares, “jogando a sujeira para baixo do
tapete”, sem resolver o problema da baixa escolarização brasileira, que se
arrasta desde de sempre, inclusive, no período militar, conforme o pesquisador
Sérgio Costa Ribeiro. Na esteira de todos esses problemas encontramos o Mobral,
que propagandeou muito mais que executou (a taxa de analfabetismo entre jovens em idade escolar bateu os 20%! E se incluirmos os adolescentes acima de 15 anos e os adulto, isso aumenta, escandalosamente), adotou uma referência pedagógica tecnicista ultra-tradicional
de alfabetização e nem chegou perto de atender minimamente a demanda social com
a qualidade necessária.
Precisamos reconhecer os esforços
dos militares (assim como de todos os Governos que já vigeram no Brasil) no
sentido de implementar mudanças que possibilitassem o desenvolvimento econômico
do país. No entanto, como deixa claro o texto, estabelecer uma relação de
idolatria com um passado mítico, desconsiderando todo o contexto da época e atual,
em comparações espúrias, sem dar visibilidade aos inúmeros e graves problemas políticos,
sociais, econômicos e ambientais que acompanharam esses esforços, em razão de
um direcionamento ideológico comprometido mais com o empresariado do que com a
população em geral é, no mínimo, ingênuo. Assim, afirmações saudosas em relação
ao Regime Militar, como se este tivesse sido o paraíso em Terra e seu retorno
representasse o novo Canaã, assim como sua irrestrita condenação, sem
considerar os avanços conquistados, é ilustrativo de um completo
desconhecimento histórico e da carência de uma abordagem crítica do tema.
Algumas referências (não-acadêmicas) para consulta das informações
dadas:
[1]http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/resources/anais/9/1279508786_ARQUIVO_ArtigoparaAnaisANPUH.pdf
[2] https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/obras-de-infraestrutura-do-brasil-na-ditadura/
[3]http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/resources/anais/9/1279508786_ARQUIVO_ArtigoparaAnaisANPUH.pdf