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quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

O Regime Militar e suas políticas: problemas negados pela retórica ufanista


Walner Mamede

O avanço da infraestrutura no período militar é inegável, mas os custos desse avanço foram monstruosos, se manifestaram apenas tardiamente, impactam o Brasil até os dias de hoje e exemplificam um modelo irresponsável e inconsequente de Administração Pública, produzindo aumento exponencial da dívida externa (em 20 anos, saiu de R$3,6 bi  para R$93 bi), preocupantes impactos ambientais, prejuízos sociais incalculáveis e absurda estagnação econômica. Em 1964, o Brasil era o 45o PIB do mundo, subindo para 10a posição durante o Governo Militar, contudo, mais uma vez, o custo foi imensurável. O próprio Presidente Garrastazu Médici reconheceu isso ao afirmar “O Brasil vai bem, mas o povo vai mal”, referindo-se ao aumento alarmante da desigualdade social e da pobreza, trazidos pelo intenso arrocho salarial (ao final do Regime, o salário reduziu para a metade), a invasão de capital estrangeiro, a remessa de divisas para o exterior e o acúmulo de riquezas em faixas específicas da sociedade, que reduziu a inflação na primeira metade do Regime, chegando a alarmantes 223% ao seu final e, iatrogenicamente, diminuiu o poder de compra da grande maioria da população (mais de 50% de perda ao longo de 20 anos), com uma consequente estagnação do mercado, que não se sustentava pelo alto consumo empreendido por uma pequena faixa social privilegiada.

Segundo Jairo Falcão[1], “O “milagre brasileiro” apoiou-se num tipo de crescimento econômico, priorizando a desigualdade econômica e social. O próprio Delfim Neto prognosticou ‘crescer o bolo para depois dividir’, e, por isso, o plano de desenvolvimento do grupo civil-militar no poder baseou-se no aumento das taxas de lucros, na redução de salários, na contenção do crédito, na redução da dívida pública e no encolhimento das importações para conter o déficit externo”. Nesse sentido, a Ponte Rio-Niterói, a usina de Anga, as hidrelétricas de Itaipu, Tucuruí, Balbina, Ilha Solteira e Jupiá, os metrôs e quilômetros de estrada construídos, o incremento da indústria siderúrgica, com o Projeto Grande Carajás, as empresas e órgãos estatais criados e as políticas energéticas mirabolantes, como o PróÁlcool e o enriquecimento de urânio, não conseguem justificar a conta social, econômica e ambiental gerada e deixada de herança para os Governos seguintes. Fazer obras e criar políticas é fácil quando a conta é paga por terceiros!

Em adição a isso, precisamos considerar os tropeços gerados pela megalomania inconsequente dos militares. As usinas de Angra (cuja terceira etapa nunca chegou a ser finalizada pelos militares, tendo sido um buraco sem fundo que consumiu muito dinheiro e retomada, apenas, em 2008) e a hidrelétrica de Balbina, entre outros, são monumentos à estupidez, que consumiram milhões e milhões de dólares, comprometeram extensas áreas florestais, como a inundação provocada pela hidrelétrica de Balbina, e não atendem minimamente as expectativas (Angra produz meros 1,57% da energia consumida no Brasil e Balbina produz irrisórios 250 megawatts). A hidrelétrica de Tucuruí foi foco de intensas críticas por ter desalojado várias comunidades e destruído a fauna e flora locais com a extensa inundação provocada. Associado a isso, existem os inúmeros escândalos de corrupção e prevaricação nos quais se envolveram Angra, Itaipu, Tucuruí e Balbina, além dos gastos com royalties compensatórios por perdas ambientais e uso dos recursos hídricos, que giram em torno de 15% de suas receitas. Para Guilherme de Azevedo Dantas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “Tucuruí e Balbina são empreendimentos onde os interesses energéticos ‘atropelaram’ questões ambientais”. Para se ter uma ideia, segundo Robson Rodrigues[2], em estudo publicado pela Editora Abril, em 2017, “Itaipu custou US$ 16 bilhões, e sua dívida só será paga em 2023; Tucuruí alavancou US$ 3,7 bilhões; as usinas de Angra 1 e 2 custaram, segundo a Eletronuclear, R$ 1,468 bilhão e R$ 5,108 bilhões; a Ponte Rio-Niterói, US$ 400 milhões, sendo US$ 88 milhões de empréstimo externo com a condição de que o aço do vão central fosse comprado de empresas inglesas”. A conta de todo esse impropério administrativo desaguou nos anos 80, agravado pela crise do petróleo de 79, o que alimentou o desejo dos militares em sair do Governo e deixar a conta para seus sucessores, e se arrasta até hoje.

Podemos, ainda, lembrar da Transamazônica, cuja construção consumiu milhões de dólares, custou a vida de 8 mil índios e de um número desconhecido de trabalhadores e colonos, provocou intensas disputas agrárias, agrediu três ecossistemas (caatinga, cerrado e floresta), ofereceu condições precárias de trabalho, nunca atendeu ao que se propunha e nem teve seu último trecho construído, tudo isso por ausência de planejamento, de estudo de viabilidade econômica, de responsabilidade social e de declarações e propagandas ufanistas, exageradas e inconsequentes dos militares, que produziram situações complicadas e preocupantes, como migração descoordenada, disputa de terras, garimpos ilegais, problemas de saúde pública e insegurança social nas áreas de ocupação, o que, inclusive, levou à desmotivação de colonos para se fixarem na região. Para Delfin Neto, “A Transamazônica foi um erro produzido pela ignorância de imaginar que a Amazônia fosse um território rico”. A Transpantaneira e a Perimetral Norte não tiveram histórico diferente da Transamazônica e respondiam, conjuntamente a outros projetos de expansão da malha rodoviária e desmonte dos modais ferroviário, fluvial e marítimo, a um pressuposto básico trazido pela Escola Superior de Guerra, conforme Jairo Falcão[3]: “desenvolvimento de acumulação capitalista, baseado na indústria de bens duráveis, entre elas, a automobilística”, com o consequente aumento de incentivos e facilitações de crédito para a aquisição de caminhões e criação de transportadoras rodoviárias. Ainda segundo Falcão, as estradas de ferro, no ano de 1972, foram reduzidas em 7.419 km, do total de 10.795 km e a preocupação dos militares foi muito mais com a expansão do que com a recuperação e conservação da malha rodoviária já existente. O investimento nesse projeto foi de mais de 4% do PIB, enquanto que nos setores ferroviário e marítimo juntos orbitou em torno de meros 1%. Tal política produziu graves problemas com o disparo do preço do petróleo a partir de 74 e a exacerbação da crise a partir de 79, forçando o Governo a reduzir, drasticamente, o investimento na expansão rodoviária, sem investimento compensatório equivalente em outras modalidades de transporte, produzindo seu estrangulamento e encarecimento, e favorecendo empresas estrangeiras no setor marítimo, por meio de normas da SUNAMAM que privilegiavam o perfil dessas empresas, em detrimento de características próprias de empresas brasileiras, segundo a revista Portos e Navios, em janeiro de 79.

Se enveredarmos pelo campo da Educação (e nem falaremos do INAMPS e da Saúde aqui, cujo caos criava esperas intermináveis que obrigavam aos doentes dormirem nas longas filas, aguardando atendimento, e fomentavam a venda de lugares, sendo um sistema público restritivo, destinado apenas aos que possuíssem relações formais de emprego) a situação é mais preocupante. A afirmação mais comum, atualmente, é que a escola do passado ensinava melhor e que os professores eram respeitados pelos alunos. Se considerarmos que até meados dos anos 50 a escola era ambiente destinado a pessoas de classe média e alta, que as crianças possuíam já no lar as primeiras referências de um mundo letrado e instruído, pois seus pais possuíam esse nível de educação, que suas famílias eram bem estruturadas e possuíam mães presentes em tempo integral na vida da criança e que isso faz toda a diferença no desempenho escolar, pois a criança já chega na escola com um rico repertório educacional, é compreensível o equívoco da afirmação, que confunde causa com efeito. Na alfabetização, por exemplo, a criança precisa compreender que os traços que fazemos no papel representam sons, antes de começarem a decodificar a relação grafema-fonema, própria do método fônico e, se isso se dá a partir de contextos e objetos já conhecidos e de interesse da criança, a alfabetização é muito mais eficiente. Conforme Magda Becker Soares, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, em entrevista à Nova Escola[4], nas famílias escolarizadas, essas etapas acabam ocorrendo espontaneamente antes mesmo de a criança entrar na escola e é isso que promove o equívoco comum de comparações esdrúxulas entre escolas elitizadas e aquelas que atendem alunos das camadas populares. As realidades prévias, os pontos de partida são muito desiguais e não permitem esse tipo simplista de comparação, seja entre presente e passado, seja dentro do presente.

Nos anos 60 e 70 a realidade das escolas públicas começou a mudar, mas foi com a Constituição de 88 que a universalização da Educação permitiu a entrada massiva de alunos das classes populares na escola e isso criou um desafio tanto social, quanto pedagógico e financeiro, pois o aumento explosivo do quantitativo não foi acompanhado pela qualificação de professores, pela teoria didática e pela infraestrutura, mas, em compensação, permitiu o acesso e permanência a milhares de pessoas que estavam fora da escola, dando-lhes chances, antes, inimagináveis e, com isso, todos os muitos problemas de desigualdade social tramitaram para dentro da escola pública, levando os filhos de famílias mais abastadas a migrarem para as escolas privadas. Então, referendar a realidade escolar do período militar como benchmark, momento em que a abertura da escola estava apenas se iniciando muito timidamente, é desconsiderar todo o contexto social e educacional da época equiparando-o ao atual. Equívoco semelhante se dá ao compararmos escolas públicas militarizadas atuais às civis. A aparente melhor eficiência das escolas militarizadas apenas ocorre porque elas realizam processos seletivos severos que privilegiam as camadas mais elitizadas e excluem as mais populares, “jogando a sujeira para baixo do tapete”, sem resolver o problema da baixa escolarização brasileira, que se arrasta desde de sempre, inclusive, no período militar, conforme o pesquisador Sérgio Costa Ribeiro. Na esteira de todos esses problemas encontramos o Mobral, que propagandeou muito mais que executou (a taxa de analfabetismo entre jovens em idade escolar bateu os 20%! E se incluirmos os adolescentes acima de 15 anos e os adulto, isso aumenta, escandalosamente), adotou uma referência pedagógica tecnicista ultra-tradicional de alfabetização e nem chegou perto de atender minimamente a demanda social com a qualidade necessária.
Precisamos reconhecer os esforços dos militares (assim como de todos os Governos que já vigeram no Brasil) no sentido de implementar mudanças que possibilitassem o desenvolvimento econômico do país. No entanto, como deixa claro o texto, estabelecer uma relação de idolatria com um passado mítico, desconsiderando todo o contexto da época e atual, em comparações espúrias, sem dar visibilidade aos inúmeros e graves problemas políticos, sociais, econômicos e ambientais que acompanharam esses esforços, em razão de um direcionamento ideológico comprometido mais com o empresariado do que com a população em geral é, no mínimo, ingênuo. Assim, afirmações saudosas em relação ao Regime Militar, como se este tivesse sido o paraíso em Terra e seu retorno representasse o novo Canaã, assim como sua irrestrita condenação, sem considerar os avanços conquistados, é ilustrativo de um completo desconhecimento histórico e da carência de uma abordagem crítica do tema.

Algumas referências (não-acadêmicas) para consulta das informações dadas:




[1]http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/resources/anais/9/1279508786_ARQUIVO_ArtigoparaAnaisANPUH.pdf
[2] https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/obras-de-infraestrutura-do-brasil-na-ditadura/
[3]http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/resources/anais/9/1279508786_ARQUIVO_ArtigoparaAnaisANPUH.pdf

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Cirurgia genital: mutilação ou direito cultural?




Por Walner Mamede 

O presente ensaio não realiza uma apologia acerca de posições contrárias ou favoráveis ao tema proposto. Tampouco é uma crítica à defesa do direito da mulher ou do homem a uma autonomia sobre seu próprio corpo. Antes, é um convite à reflexão sobre como tendemos a ser etnocêntricos e como convocamos a Ciência a nosso favor, em uma narrativa universalizante, quando assim é conveniente, ainda nos dias de hoje, sem nos darmos conta dos aspectos subjetivos e políticos que figuram como pano de fundo na determinação de teorias científicas, nem sempre isentas de interesses ou de interferências de fatores extracientíficos.

Cirurgias genitais, tanto masculinas quanto femininas, praticadas em regiões africanas como produto cultural e religioso têm sido alvo de grandes discussões, na atualidade, e adentraram o campo de debate sobre direitos humanos, sexismo, feminismo e violência contra a mulher e seu direito de decidir sobre seu próprio corpo e sexualidade. Contudo, conforme Shahvisi e Earp (2018), a Rede Consultiva de Políticas Públicas não-partidária sobre Cirurgias Genitais Femininas na África afirma que “a grande maioria das sociedades mundiais pode ser descrita como patriarcal e a maioria não modifica os órgãos genitais de qualquer sexo ou modifica apenas os genitais dos homens. Não há quase nenhuma sociedade patriarcal com cirurgias genitais habituais para mulheres apenas" (p.14). Ainda conforme os autores, a forma como as intervenções cirúrgicas genitais femininas vêm sendo apresentadas no Ocidente se mostram um tanto estereotipadas e descontextualizadas de sua raiz cultural. Assim, as mulheres originárias dessas culturas têm sido tratadas quase sempre como destituídas de capacidade de discernimento e vítimas ingênuas de um sistema patriarcal que controla sua sexualidade, não dando voz a um grande e dominante número de mulheres que veem nessa prática um costume a ser respeitado como construtor da identidade feminina e da ordem social em seus países.

Na esteira da descontextualização cultural das análises, desconsideram-se outros elementos como o fato de que, em alguns grupos sociais, a circuncisão masculina é reconhecida e realizada, explicitamente, como rito de passagem para ascensão ao status adulto e inclusão social entre os jovens e controle do comportamento sexual masculino, com um discurso higienista moral  que propugna a diminuição do desejo e do instinto sexual e que visa levar desde a inibição da masturbação à redução do número de coitos, passando pela busca de não propagação do HIV e outras doenças. Isso pode ser verificado em países tão distintos quanto Camarões e EUA, em grupos específicos, ou mesmo em campanhas internacionais, no Ocidente, favoráveis a essa prática. Além disso, existe uma aviso subliminar nos ritos de passagem masculinos que incluem a mutilação peniana (circuncisão, a sub-incisão, raspagem uretral, sangria, pique, piercings...): os mais velhos passam a mensagem aos noviços de que possuem o poder de castração em caso de uso inadequado do pênis, exercendo um controle sobre o comportamento sexual masculino, segundo padrões culturais ou religiosos. No entanto, as oposições morais dominantes no Ocidente se apresentam, apenas, contra o mutilação feminina, com o argumento de ser ela um ato sexista de dominação masculina sobre a sexualidade feminina, enquanto a circuncisão é vista como aceitável e sem consequências morais, físicas ou psicológicas. Ainda que motivos sexuais figurem como justificativa para mutilações genitais tanto femininas quanto masculinas em algumas comunidades, em outras não são eles os causadores do costume (Shahvisi e Earp, 2018). Tais evidências colocam em xeque a concepção de repressão sexual feminina por uma sociedade, eminentemente, machista ao apresentar indícios de que o costume da mutilação genital nem sempre é sexualmente condicionado e, quando o é, não é orientado pelo gênero da “vítima” e sim está disseminado nessas comunidades como uma tentativa de coação comportamental difusa em relação à sexualidade, em resposta a crenças e valores culturais ou religiosos, que atingem tanto homens, quanto mulheres.

De acordo com Shahvisi e Earp (2018), há indícios de que a aversão ocidental à mutilação feminina e a permissividade à mutilação masculina (assim como às cirurgias estéticas genitais femininas, que perseguem objetivos ideológicos muito próximos das ditas mutilações, mas gozam de prestígio entre mulheres ocidentais brancas) estejam em linha de diálogo direto com uma islãfobia e à identificação do Islã como uma sociedade patriarcal e misógina, cujas práticas, por força da religião, são sempre sexistas, ainda que possuam muito mais homens mutilados que mulheres entre eles. A disseminação dessa imagem do povo mulçumano permitiu a camuflagem do preconceito em relação a ele na forma da preocupação com o bem-estar da mulher, fortalecendo discursos, bandeiras e agendas da luta contra o sexismo pelo mundo e atendendo interesses políticos e econômicos de desqualificação desse povo perante a comunidade mundial. Ainda que exista legitimidade na luta contra o preconceito e a violência dirigidos à mulher, a retórica que utiliza o costume mulçumano como ilustração da existência de tal preconceito recorre ao sofisma para tal, em uma análise reducionista da cultura desse povo, o que produz um preconceito (contra o mulçumano) em busca de redução de outro (contra a mulher), em uma estratégia instrumentalista, onde os fins justificam os meios, sem qualquer preocupação com seus efeitos colaterais. A estrutura do raciocínio é simples: (1) A conseguiu se legitimar como bom (mito). (2) B é mau porque não atende as expectativas de A (autocentrismo). (3) Se B é mau, tudo o que faz é ruim (falácia da origem).  (4) Se x é produto de B, boa coisa não é. (5) A disse que a conduta y é má e deve ser coibida (apelo à autoridade). (6) Quem produz y é ruim, pois uma árvore se conhece por seus frutos (falácia da generalização). (7) As condutas x e y parecem idênticas. (8) A disse que x e y são a mesma coisa (reducionismo). (9) Então B produz também y, logo, B é muito mau e deve ser combatido. (10) Se B produz y, y é mesmo muito ruim e deve ser combatido (falácia da circularidade). Com esse raciocínio, produz-se uma associação espúria entre dois elementos distintos e um justifica o juízo de valor acerca do outro. Como o raciocínio é complexo e distanciado no tempo, as associações falaciosas não são percebidas. Aqui opera (a) uma percepção sensorial de dados do real; (b) uma elaboração de conceitos e concepções derivadas dos dados; (c) a produção de ideias e teorias derivadas dos conceitos e concepções. Essa é uma operação de fundo kantiano e é legítima, não fosse o fato de, no caso da equiparação entre sexismo e costume mulçumano, não ter se considerado as intenções por trás dos atos.




Em outras palavras, numa abordagem kantiana, a intenção é o que define a moralidade do ato e este deve se dar, independentemente, das consequências se a lei a priori que o motiva atende a um imperativo categórico, algo que seja socialmente aceito e comprometido com a harmonia social. Assim, antes de arbitrar pela classificação da amputação clitoriana como um ato sexista, há que se colocar as seguintes questões: o que, de fato, na cultura considerada, motiva o ato?; a motivação em um contexto possui as mesmas premissas morais, éticas, filosóficas, ideológicas, técnicas que em outro?. Colocar tais questões impede o passo (8), do reducionismo, e já minaria a possibilidade de associação espúria e circularidade, passo (10). No entanto, as conclusões (ideias) advindas desse (e de qualquer) raciocínio são produtos de reflexões lógico-racionais (passo (c)) e, como tais, carentes de lastro óbvio e direto com a realidade empírica, pois, apesar de parecer, não derivam da experiência e sim da intelecção sobre a experiência e, assim, passíveis de ambiguidades, obscuridades, vieses originados da subjetividade e da biografia de quem observa (passo(a)), julga (passo(b)) e conclui (passo (c)) e, portanto, permissivas à existência de antinomias, cuja verdade dos enunciados será apenas, arbitrariamente, decidida pelos agentes imersos em um campo social, cultural, científico ou qualquer outro, ou pelos atores interessados nos resultados a se obter. A arbitragem, para Bourdieu (2004 a, b), seria herdeira da estrutura e do habitus existente no campo em questão, sendo, no campo científico, a realidade empírica convocada a priori como árbitro da decisão, em um processo de verificação e refutação de hipóteses. Para Latour (2000; 2012), seria tributária das negociações de interesses intersubjetivas realizadas pelos atores em uma rede sociotécnica, havendo convocação da realidade empírica como legitimadora da decisão, apenas a posteriori de uma refutação política da hipótese perdedora. Em ambos os casos não existe isenção da interferência de interesses políticos e econômicos externos à Ciência na decisão chancelada.

Nesse contexto, acaba por existir um imperialismo cultural velado ocidental sobre as comunidades não-ocidentais que propugnam o direito à amputação clitoriana (ou outro procedimento “mutilatório” genital). Com isso, cria-se uma narrativa legitimadora de intervenções locais externas sob o discurso de preocupação com o bem-estar da população autóctone, assim como ocorreu na colonização do Brasil (Gomes e Novais, 2013), quando os colonizadores, na figura dos jesuítas, utilizaram a conduta sexual “depravada” (inclusa, e principalmente, a prática do homossexualismo) dos indígenas como elemento legitimador de sua catequização, a fim de que suas almas fossem salvas e, a partir disso, toda sorte de atrocidades contra os indígenas passaram a ser compreendidas como em seu próprio benefício, pois eram ignorantes e não possuíam discernimento sobre o que lhes era ou não benéfico. Guardadas as devidas ressalvas entre um e outro caso, a estrutura do pensamento é a mesma e a história já mostrou, no caso brasileiro, o quanto as atitudes colonialistas foram violentas e inadequadas. Tendo em conta essas questões, porque considerar que as intervenções do Ocidentes sobre as culturas não-ocidentais que praticam intervenções cirúrgicas genitais como forma de construção de identidades masculinas ou femininas, seja em resposta a critérios culturais, seja em atendimento a exigências religiosas, estejam erradas ou sejam más? Apenas porque possuímos, hoje, a chancela da Ciência e dos pretensos consensos das convenções que editaram os direitos Humanos Universais? Tais entidades ou instituições sociais modernas diferem em que medida, em termos de critérios lógico-racionais, das instituições que deram causa às chacinas e opressões aos nossos indígenas durante a colonização? Ao considerarmos a Ciência, como arauto do conhecimento verdadeiro, como explicar que uma teoria passada foi, cientificamente, elaborada e, hoje, é considerada obsoleta ou absurda? Podemos dizer que ela foi menos científica do que a teoria que a substituiu e, por esse motivo, as ações embasadas na teoria atual possuem mais chances de sucesso? Não existiria a possibilidade de uma teoria futura nos mostrar o quão equivocados estávamos e nos fazer arrepender das decisões tomadas, quando poderiam ter sido diferentes se incluíssemos, em seu cálculo, a percepção e opinião dos sujeitos para os quais nossas ações estão sendo dirigidas? Essas são questões que precisam ser discutidas antes do estabelecimento de normas universais que visem a homogenização de condutas e valores entre culturas que não compartilham das mesmas crenças e necessidades, ainda que a Ciência surja como a grande legitimadora das decisões, pois, como bem trás Annemarrie Mol, em sua Política Ontológica, a realidade é, mais que plural, múltipla e demanda a participação de seus múltiplos atores, munidos das muitas performances pertencentes ao objeto em análise para que ele seja, minimamente, compreendido em sua complexidade, aceitando-se sua multiplicidade ontológica, subjetiva, temporal e espacialmente, determinada (Mol, 1999).

Bibliografia

Bourdieu, Pierre. 2004a. Os usos sociais da Ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Unesp.

Bourdieu, Pierre. 2004b. Para uma sociologia da Ciência. Lisboa: Edições 70.

Gomes, Aguinaldo Rodrigues; Novais, Sandra Nara da Silva. 2013. Práticas Sexuais e Homossexualidade entre os Indígenas Brasileiros. Caderno Espaço Feminino - Uberlândia-MG - v. 26, n. 2. Disponível em http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem/article/viewFile/24666/13726.

Latour, B. 2000. Ciência em ação. São Paulo, São Paulo: Unesp.

Latour,  B.  2012.  Reagregando  o  Social:  Uma  introdução  à  Teoria  do  Ator-Rede. Salvador/Ba-Bauru/SP: EDUFBA/EDUSC.

Mol, Annemarie. 1999. Ontological Politics: a word and some questions. In J. Law & J. Hassard (Org.). Actor Network Theory and After. Oxford: Blackwell Publishers (The Sociological Review, p. 74-89). Disponível em http://dx.doi.org/10.1111/j.1467-954X.1999.tb03483.x.

Shahvisi, A., & Earp, B. D. (in press). 2018. The law and ethics of female genital cutting. In S. Creighton & L.-M. Liao (Eds.) Female Genital Cosmetic Surgery: Interdisciplinary Analysis & Solution. Cambridge: Cambridge University Press. Disponível em https://midwivesofcolor.wordpress.com/2018/01/14/the-law-and-ethics-of-female-genital-cutting/.