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quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

O Regime Militar e suas políticas: problemas negados pela retórica ufanista


Walner Mamede

O avanço da infraestrutura no período militar é inegável, mas os custos desse avanço foram monstruosos, se manifestaram apenas tardiamente, impactam o Brasil até os dias de hoje e exemplificam um modelo irresponsável e inconsequente de Administração Pública, produzindo aumento exponencial da dívida externa (em 20 anos, saiu de R$3,6 bi  para R$93 bi), preocupantes impactos ambientais, prejuízos sociais incalculáveis e absurda estagnação econômica. Em 1964, o Brasil era o 45o PIB do mundo, subindo para 10a posição durante o Governo Militar, contudo, mais uma vez, o custo foi imensurável. O próprio Presidente Garrastazu Médici reconheceu isso ao afirmar “O Brasil vai bem, mas o povo vai mal”, referindo-se ao aumento alarmante da desigualdade social e da pobreza, trazidos pelo intenso arrocho salarial (ao final do Regime, o salário reduziu para a metade), a invasão de capital estrangeiro, a remessa de divisas para o exterior e o acúmulo de riquezas em faixas específicas da sociedade, que reduziu a inflação na primeira metade do Regime, chegando a alarmantes 223% ao seu final e, iatrogenicamente, diminuiu o poder de compra da grande maioria da população (mais de 50% de perda ao longo de 20 anos), com uma consequente estagnação do mercado, que não se sustentava pelo alto consumo empreendido por uma pequena faixa social privilegiada.

Segundo Jairo Falcão[1], “O “milagre brasileiro” apoiou-se num tipo de crescimento econômico, priorizando a desigualdade econômica e social. O próprio Delfim Neto prognosticou ‘crescer o bolo para depois dividir’, e, por isso, o plano de desenvolvimento do grupo civil-militar no poder baseou-se no aumento das taxas de lucros, na redução de salários, na contenção do crédito, na redução da dívida pública e no encolhimento das importações para conter o déficit externo”. Nesse sentido, a Ponte Rio-Niterói, a usina de Anga, as hidrelétricas de Itaipu, Tucuruí, Balbina, Ilha Solteira e Jupiá, os metrôs e quilômetros de estrada construídos, o incremento da indústria siderúrgica, com o Projeto Grande Carajás, as empresas e órgãos estatais criados e as políticas energéticas mirabolantes, como o PróÁlcool e o enriquecimento de urânio, não conseguem justificar a conta social, econômica e ambiental gerada e deixada de herança para os Governos seguintes. Fazer obras e criar políticas é fácil quando a conta é paga por terceiros!

Em adição a isso, precisamos considerar os tropeços gerados pela megalomania inconsequente dos militares. As usinas de Angra (cuja terceira etapa nunca chegou a ser finalizada pelos militares, tendo sido um buraco sem fundo que consumiu muito dinheiro e retomada, apenas, em 2008) e a hidrelétrica de Balbina, entre outros, são monumentos à estupidez, que consumiram milhões e milhões de dólares, comprometeram extensas áreas florestais, como a inundação provocada pela hidrelétrica de Balbina, e não atendem minimamente as expectativas (Angra produz meros 1,57% da energia consumida no Brasil e Balbina produz irrisórios 250 megawatts). A hidrelétrica de Tucuruí foi foco de intensas críticas por ter desalojado várias comunidades e destruído a fauna e flora locais com a extensa inundação provocada. Associado a isso, existem os inúmeros escândalos de corrupção e prevaricação nos quais se envolveram Angra, Itaipu, Tucuruí e Balbina, além dos gastos com royalties compensatórios por perdas ambientais e uso dos recursos hídricos, que giram em torno de 15% de suas receitas. Para Guilherme de Azevedo Dantas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “Tucuruí e Balbina são empreendimentos onde os interesses energéticos ‘atropelaram’ questões ambientais”. Para se ter uma ideia, segundo Robson Rodrigues[2], em estudo publicado pela Editora Abril, em 2017, “Itaipu custou US$ 16 bilhões, e sua dívida só será paga em 2023; Tucuruí alavancou US$ 3,7 bilhões; as usinas de Angra 1 e 2 custaram, segundo a Eletronuclear, R$ 1,468 bilhão e R$ 5,108 bilhões; a Ponte Rio-Niterói, US$ 400 milhões, sendo US$ 88 milhões de empréstimo externo com a condição de que o aço do vão central fosse comprado de empresas inglesas”. A conta de todo esse impropério administrativo desaguou nos anos 80, agravado pela crise do petróleo de 79, o que alimentou o desejo dos militares em sair do Governo e deixar a conta para seus sucessores, e se arrasta até hoje.

Podemos, ainda, lembrar da Transamazônica, cuja construção consumiu milhões de dólares, custou a vida de 8 mil índios e de um número desconhecido de trabalhadores e colonos, provocou intensas disputas agrárias, agrediu três ecossistemas (caatinga, cerrado e floresta), ofereceu condições precárias de trabalho, nunca atendeu ao que se propunha e nem teve seu último trecho construído, tudo isso por ausência de planejamento, de estudo de viabilidade econômica, de responsabilidade social e de declarações e propagandas ufanistas, exageradas e inconsequentes dos militares, que produziram situações complicadas e preocupantes, como migração descoordenada, disputa de terras, garimpos ilegais, problemas de saúde pública e insegurança social nas áreas de ocupação, o que, inclusive, levou à desmotivação de colonos para se fixarem na região. Para Delfin Neto, “A Transamazônica foi um erro produzido pela ignorância de imaginar que a Amazônia fosse um território rico”. A Transpantaneira e a Perimetral Norte não tiveram histórico diferente da Transamazônica e respondiam, conjuntamente a outros projetos de expansão da malha rodoviária e desmonte dos modais ferroviário, fluvial e marítimo, a um pressuposto básico trazido pela Escola Superior de Guerra, conforme Jairo Falcão[3]: “desenvolvimento de acumulação capitalista, baseado na indústria de bens duráveis, entre elas, a automobilística”, com o consequente aumento de incentivos e facilitações de crédito para a aquisição de caminhões e criação de transportadoras rodoviárias. Ainda segundo Falcão, as estradas de ferro, no ano de 1972, foram reduzidas em 7.419 km, do total de 10.795 km e a preocupação dos militares foi muito mais com a expansão do que com a recuperação e conservação da malha rodoviária já existente. O investimento nesse projeto foi de mais de 4% do PIB, enquanto que nos setores ferroviário e marítimo juntos orbitou em torno de meros 1%. Tal política produziu graves problemas com o disparo do preço do petróleo a partir de 74 e a exacerbação da crise a partir de 79, forçando o Governo a reduzir, drasticamente, o investimento na expansão rodoviária, sem investimento compensatório equivalente em outras modalidades de transporte, produzindo seu estrangulamento e encarecimento, e favorecendo empresas estrangeiras no setor marítimo, por meio de normas da SUNAMAM que privilegiavam o perfil dessas empresas, em detrimento de características próprias de empresas brasileiras, segundo a revista Portos e Navios, em janeiro de 79.

Se enveredarmos pelo campo da Educação (e nem falaremos do INAMPS e da Saúde aqui, cujo caos criava esperas intermináveis que obrigavam aos doentes dormirem nas longas filas, aguardando atendimento, e fomentavam a venda de lugares, sendo um sistema público restritivo, destinado apenas aos que possuíssem relações formais de emprego) a situação é mais preocupante. A afirmação mais comum, atualmente, é que a escola do passado ensinava melhor e que os professores eram respeitados pelos alunos. Se considerarmos que até meados dos anos 50 a escola era ambiente destinado a pessoas de classe média e alta, que as crianças possuíam já no lar as primeiras referências de um mundo letrado e instruído, pois seus pais possuíam esse nível de educação, que suas famílias eram bem estruturadas e possuíam mães presentes em tempo integral na vida da criança e que isso faz toda a diferença no desempenho escolar, pois a criança já chega na escola com um rico repertório educacional, é compreensível o equívoco da afirmação, que confunde causa com efeito. Na alfabetização, por exemplo, a criança precisa compreender que os traços que fazemos no papel representam sons, antes de começarem a decodificar a relação grafema-fonema, própria do método fônico e, se isso se dá a partir de contextos e objetos já conhecidos e de interesse da criança, a alfabetização é muito mais eficiente. Conforme Magda Becker Soares, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, em entrevista à Nova Escola[4], nas famílias escolarizadas, essas etapas acabam ocorrendo espontaneamente antes mesmo de a criança entrar na escola e é isso que promove o equívoco comum de comparações esdrúxulas entre escolas elitizadas e aquelas que atendem alunos das camadas populares. As realidades prévias, os pontos de partida são muito desiguais e não permitem esse tipo simplista de comparação, seja entre presente e passado, seja dentro do presente.

Nos anos 60 e 70 a realidade das escolas públicas começou a mudar, mas foi com a Constituição de 88 que a universalização da Educação permitiu a entrada massiva de alunos das classes populares na escola e isso criou um desafio tanto social, quanto pedagógico e financeiro, pois o aumento explosivo do quantitativo não foi acompanhado pela qualificação de professores, pela teoria didática e pela infraestrutura, mas, em compensação, permitiu o acesso e permanência a milhares de pessoas que estavam fora da escola, dando-lhes chances, antes, inimagináveis e, com isso, todos os muitos problemas de desigualdade social tramitaram para dentro da escola pública, levando os filhos de famílias mais abastadas a migrarem para as escolas privadas. Então, referendar a realidade escolar do período militar como benchmark, momento em que a abertura da escola estava apenas se iniciando muito timidamente, é desconsiderar todo o contexto social e educacional da época equiparando-o ao atual. Equívoco semelhante se dá ao compararmos escolas públicas militarizadas atuais às civis. A aparente melhor eficiência das escolas militarizadas apenas ocorre porque elas realizam processos seletivos severos que privilegiam as camadas mais elitizadas e excluem as mais populares, “jogando a sujeira para baixo do tapete”, sem resolver o problema da baixa escolarização brasileira, que se arrasta desde de sempre, inclusive, no período militar, conforme o pesquisador Sérgio Costa Ribeiro. Na esteira de todos esses problemas encontramos o Mobral, que propagandeou muito mais que executou (a taxa de analfabetismo entre jovens em idade escolar bateu os 20%! E se incluirmos os adolescentes acima de 15 anos e os adulto, isso aumenta, escandalosamente), adotou uma referência pedagógica tecnicista ultra-tradicional de alfabetização e nem chegou perto de atender minimamente a demanda social com a qualidade necessária.
Precisamos reconhecer os esforços dos militares (assim como de todos os Governos que já vigeram no Brasil) no sentido de implementar mudanças que possibilitassem o desenvolvimento econômico do país. No entanto, como deixa claro o texto, estabelecer uma relação de idolatria com um passado mítico, desconsiderando todo o contexto da época e atual, em comparações espúrias, sem dar visibilidade aos inúmeros e graves problemas políticos, sociais, econômicos e ambientais que acompanharam esses esforços, em razão de um direcionamento ideológico comprometido mais com o empresariado do que com a população em geral é, no mínimo, ingênuo. Assim, afirmações saudosas em relação ao Regime Militar, como se este tivesse sido o paraíso em Terra e seu retorno representasse o novo Canaã, assim como sua irrestrita condenação, sem considerar os avanços conquistados, é ilustrativo de um completo desconhecimento histórico e da carência de uma abordagem crítica do tema.

Algumas referências (não-acadêmicas) para consulta das informações dadas:




[1]http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/resources/anais/9/1279508786_ARQUIVO_ArtigoparaAnaisANPUH.pdf
[2] https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/obras-de-infraestrutura-do-brasil-na-ditadura/
[3]http://www.eeh2010.anpuh-rs.org.br/resources/anais/9/1279508786_ARQUIVO_ArtigoparaAnaisANPUH.pdf