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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

RUÍDO NOTURNO, UM MAL DE DIFÍCIL SOLUÇÃO NA CULTURA DO BARULHO


Walner Mamede

É fato conhecido e reconhecido que diversas casas de show, boates ou bares com música ao vivo ou mecânica têm promovido perturbação da paz, do sossego e da saúde e comprometimento do meio ambiente urbano por poluição sonora, pois, apesar das alegações em contrário, não possuem as condições estruturais mínimas para sediar eventos festivos e musicais, conforme estabelecido pelas normas vigentes no Brasil: Classificação CNAE: 823000200X - GI-3, própria para casas de festas, shows e eventos.

A poluição sonora se tipifica, nos casos citados, pelo vazamento de incômodo ruído através das paredes, janelas, orifícios e portas para entrada e saída de clientes. Quando o estabelecimento é um ambiente aberto a situação é, ainda, pior. Além disso, claro, não podemos nos esquecer daquele incômodo produzido pelos carros à porta do estabelecimento, os quais, muitas vezes, estacionam nas portas das residências ou reduzem a velocidade, tendo por ruído seus próprios motores e sons automotivos, arrancando, por vezes, em velocidade, com as famosas cantadas de pneu, e têm seus proprietários embriagados se envolvendo em discussões acaloradas madrugada adentro. Há de se entender que os ruídos provocados por clientes efetivos ou potenciais no exterior do estabelecimento têm pouca probabilidade de serem eficientemente controlados pelos proprietários (o que não se estende à polícia, que deveria ser atuante), mas o mesmo não deveria ocorrer com os ruídos provocados pelo próprio estabelecimento ou em seu interior em decorrência de suas atividades.

Lembro que a legislação é clara ao determinar o grau de incomodidade (Lei 8617/2008 e art. 101 do Plano Diretor de Goiânia), especificando o nível de ruído permitido pelo estabelecimento, e exigir estudo do impacto urbano promovido (Lei 8646/2008 e arts. 94 à 97 do Plano Diretor de Goiânia), prevendo o necessário controle da poluição sonora, conforme art. 14 da Lei Complementar 171 (Plano Diretor de Goiânia), a fim de preservar a paz e a saúde humanas e evitar a degradação do meio ambiente, compatibilizando a preservação deste com o desenvolvimento econômico, social e cultural (Lei Federal 6938/81).

Vale ressaltar, ainda, que a saúde e o bem-estar não são comprometidos apenas pelo volume excessivo do ruído emitido por máquinas, vozes e equipamentos de som, mas também por sua constância ou intermitência, particularmente, se de ocorrência em horários de descanso, independentemente dos decibéis alcançados (ZORZAL, BRUNS e TONIN et al, 2003) [1], o que é coerente com o conceito ampliado de saúde preconizado pelo Sistema Único de Saúde-SUS, no qual a saúde do cidadão não se restringe à ausência de doença e muito menos a aspectos relativos ao corpo biológico, mas se estende a determinantes e condicionantes sociais e sobre os quais o poder público possui obrigação de atuar a fim, inclusive, de preservar a força de trabalho e a produtividade do país. Frequências acústicas incômodas, mesmo aquelas de intensidade média à baixa e ainda que em limite inferior aos decibéis preconizados pela NBR 10151, têm a propriedade de, em médio e longo prazos, insidiosamente, causar níveis preocupantes de estresse, que podem redundar em patologias crônicas físicas ou psíquicas, comprometendo, inclusive, o desempenho social e profissional do indivíduo e, em escala, da própria comunidade. Os níveis, legalmente, determinados visam estabelecer um parâmetro seguro para a fiscalização estatal, mas não prescindem de uma avaliação crítica por parte do poder público em termos de vigilância sanitária, quando este se dispõe a garantir a qualidade de vida de seus cidadãos, como convém a um estado democrático de direito.
Em um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (http://labs.icb.ufmg.br/lpf/2-23.html), foi encontrado que:

A partir do valor médio de 35 dBA, reações vegetativas e no EEG e mudanças na estrutura do sono são verificadas. Enquanto os estágios superficiais aumentam a duração, o tempo total de sono e os estágios profundos, MOR e estágio 4, reduzem bastante. O despertar já pode ser atingido em 44 dBA e 53 dBA de pico respectivamente para ambientes calmos, média de 25 dBA, e barulhentos, 45 dBA. Mas, quando o ruído do fundo está a 65 dBA, os reflexos protetores do ouvido médio parecem funcionar, anulando em parte a audição e introduzindo insegurança pela perda da vigília, mostrado pela reação de maior latência para dormir. Por isto provavelmente a 75 dBA de ruído de fundo a qualidade do sono se recupera parcialmente, mas longe da qualidade de níveis mais silenciosos. A poluição sonora portanto piora significantemente a qualidade absoluta do sono, acarretando pior desempenho físico, mental e psicológico e perda provável da alerta auditiva...

Para Fernando Pimentel Souza, pesquisador responsável pelos estudos, “o ruído de pico desperta mais quando o ruído de fundo é menor, sendo abafado seu efeito quando o ruído de fundo é maior, mas aí já se consolidou prejuízos persistentes na qualidade do sono”. Ainda conforme Souza, em consonância com estudos mais recentes da OMS, o ruído contínuo médio em quartos de dormir não deveria ser maior que 30 dBA, com picos máximos de 45 dBA, a fim de se evitarem os reflexos negativos que acompanham o cidadão para além dos momentos efetivos de sua ocorrência, com o que Negrão (2009)[2] denominou de efeitos extra-auditivos.

A poluição sonora tem reflexos em todo o organismo e não apenas no aparelho auditivo...Alguns dos efeitos psicológicos causados pelo ruído no homem podem ser enumerados da seguinte forma: perda da concentração, perda dos reflexos, irritação permanente, insegurança quanto a eficiência dos atos, embaraço nas conversações, perda da inteligibilidade das palavras e impotência sexual...O ruído pode dificultar o adormecer e causar sérios danos ao longo do período de sono profundo proporcionando o inesperado despertar. Níveis de ruído associados aos simples eventos podem criar distúrbios momentâneos dos padrões naturais do sono, por causar mudanças dos estágios leve e profundo do mesmo. A pessoa pode sentir-se tensa e nervosa devido à ausência do repouso decorrente das horas não dormidas. O problema está relacionado com a descarga de hormônios, provocando o aumento da pressão sangüínea, vaso-constrição, aumento da produção de adrenalina e perda de orientação espacial momentânea (ZORZAL, BRUNS e TONIN et al, 2003; p. 14-15).

Aqui, no caudal do art 30 da Lei 6938/1981, compreenderemos por ‘meio ambiente’ todo o espaço natural ou construído que represente o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, permitindo, abrigando e regendo a vida em todas as suas formas. Ainda sob os auspícios do mesmo artigo, temos que:

I - ...
II - degradação da qualidade ambiental [é] a alteração adversa das características do meio ambiente;
III – poluição [é] a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
c) afetem desfavoravelmente a biota;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;
e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos;

A Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3688/41) é mais incisiva ao abordar o tema, motivando o entendimento de que o ruído sequer precisa estar acima dos limites em decibéis previstos pela NBR 10151 para que a contravenção se tipifique, por ser a perturbação do sossego uma interpretação subjetiva e contextual. O referido Decreto assim tipifica a contravenção:

Art. 42. Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios:
I – com gritaria ou algazarra;
II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda.

É notório o fato de que reclamações diversas são, frequentemente, realizadas por moradores de redondezas achacadas por esse mal, contra estabelecimentos incômodos, junto às agências de controle ambiental e de postura (a Agência Municipal de Meio Ambiente de Goiânia-AMMA é um exemplo concreto), inclusive com extensos abaixo-assinados, sem que se surta qualquer efeito, sob a alegação dos (mau medidos ou dimensionados) decibéis, sendo injustificada e incoerente a concessão de autorização de funcionamento para estabelecimentos ruidosos, sem as condições necessárias e, por vezes, em locais que outros estabelecimentos semelhantes foram embargados pelos mesmos motivos.

Sob o crivo dos princípios aqui evocados, devem estar colocados, também, os ruidos advindos de som automotivo ou residencial, cuja emissão é, igualmente, perturbadora e necessita ser coibida e reduzida a padrões aceitáveis de saúde, demandando as sansões cabíveis aos seus produtores. Não há que se falar aqui, assim como também no caso dos estabelecimentos comerciais, de repressão da cultura ou do direito subjetivo de acesso a ela, pois não existe relação nomológica entre o volume ou recorrência de ruídos e a sobrevivência de determinado elemento cultural, sendo o culto ao barulho e o desrespeito ao sossego e à paz alheios um subproduto da indústria cultural de massa. Talvez possamos, apenas, referir a baixa escolaridade e a classe social à preferência por conteúdo musical de reduzida qualidade poética e filosófica, na qual letras e melodias de fácil digestão se concentram em torno de temas com pouco ou nenhum conteúdo crítico ou reflexivo mais elaborado ou metafórico sobre o mundo. Como nos traz uma pesquisa do IBOPE (http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Documents/tribos_musicais.pdf) sobre tribos musicais, o sertanejo, o pagode, o funk e o gospel dominam absolutos nas preferências das classes C, D e E, sendo as baladas noturnas e a socialização nesses ambientes a tônica na diversão desse público. Contudo, apesar da maior tolerância das classes baixas ao ruído, não podemos afirmar que o volume da música seja fator determinante em sua manutenção como elemento cultural com maior ou menor acessibilidade ou perenidade social, ou que a luta pela redução de ruidos sonoros musicais se configure como uma defesa ou privilégio a este ou àquele gênero musical.

Tendo por referência todo o arcabouço legal e teórico citado, assim como a responsabilidade social de nossos órgãos de controle e sob o conceito ampliado de ‘meio ambiente’ encetado pela Lei 6938/81 e já há muito adotado por diversos estudiosos (HOLZER, 1997)[3], partilho da crença de que nossos representantes políticos devem prezar pela qualidade de vida de seus eleitores, acima do lucro financeiro, e que todo cidadão deve requerer as providências cabíveis, a fim de preservar a paz, o sossego e a saúde dos indivíduos de uma comunidade, sugerindo, para isso, a adoção de dispositivos como a Lei Federal 6514/2008 (evocada, em Goiânia, pelo Decreto Municipal 2149/2008), a fim de estabelecer os procedimentos, as infrações e sanções administrativas para proteção do meio ambiente, considerando infração administrativa ambiental, toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente e que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, no curto, médio e longo prazos.





[1] ZORZAL, Fábio Márcio Bisi; BRUNS, Rafael de; TONIN, Ana Karina et al. Estudo do ruído frente á legislação ambiental municipal da cidade de Curitiba. Congresso Brasileiro de Engenharia Sanitária e Ambiental n. 22; V Feira Internacional de Tecnologias de Saneamento Ambiental, Joinville-14-19 set/2003. In: AIDIS; Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental. Saneamento Ambiental: Etica e Responsabilidade Social. Joinville, ABES, set. 2003. p.1-23.

[2] NEGRÃO, Alexandra Maria Goes. Urbanização e Poluição Sonora: estudo de caso sobre os efeitos extra-auditivos provocados pelo ruído noturno urbano. (Dissertação. Mestrado). Universidade da Amazônia. Programa De Mestrado Em Desenvolvimento E Meio Ambiente Urbano. Belém, 2009. [http://www6.unama.br/mestrado/]

[3] HOLZER, Werther. Uma discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem e lugar, território e meio ambiente. Rev. Território, ano II, n. 3, 1997.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

A Suma Refutação à Gnose Espúria: uma abordagem mais racional da matéria


Walner Mamede

Faço aqui menção ao texto “The [original] Catholic Encyclopedia (excertos), A Suma Refutação à Gnose Espúria, 1910; trad. br. por F. Coelho, São Paulo, ag. 2014, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-2ko”, cuja conclusão segue abaixo. Minhas considerações vêem logo a seguir.

...A tentativa de pintar o gnosticismo como um movimento poderoso da mente humana rumo à verdade mais nobre e alta, um movimento de algum modo paralelo ao do Cristianismo, fracassou completamente. Foi abandonada pelos estudiosos recentes não tendenciosos… O gnosticismo não foi um avanço, foi retrocesso…

Tentou fazer, para o Oriente, o que o neoplatonismo tentou fazer para o Ocidente. Durante ao menos dois séculos, foi um verdadeiro perigo para o Cristianismo, embora não tão grande quanto alguns escritores modernos quereriam fazer-nos crer, como se um fio de cabelo pudesse ter mudado os destinos do cristianismo [para] gnóstico, em oposição a ortodoxo. Coisas semelhantes foram ditas do mitraísmo e do neoplatonismo, em contraposição à religião de Jesus Cristo. Mas tais afirmações têm mais de picantes que de verdade objetiva.

O Cristianismo sobreviveu, não o gnosticismo… e nenhuma quantidade da literatura teosofística que inunda os mercados…poderá dar vida ao que pereceu por defeitos intrínsecos, essenciais.
É notabilíssimo que os dois primeiros campeões do Cristianismo contra o gnosticismo — os santos Hegésipo e Ireneu — tenham exposto tão claramente o único método de combate possível, mas que também bastava por si só, para assegurar a vitória no conflito, um método que, poucos anos depois, Tertuliano explicou cientificamente em seu De Praescriptione haereticorum.

Tanto Hegésipo quanto Ireneu provaram que as doutrinas gnósticas não pertenciam àquele depósito da fé que era ensinado pela verdadeira sucessão dos bispos nas principais sés da Cristandade; os dois fizeram, como conclusão triunfante, uma lista dos bispos de Roma, desde Pedro até o Bispo de Roma do tempo deles; como o gnosticismo não era ensinado por aquela Igreja, com a qual os cristãos de toda parte estão obrigados a concordar, ficava autocondenado.» (ARENDZEN, VI, 602)...”

Para ler mais: http://wp.me/pw2MJ-2ko


Pois bem...seguem minhas considerações:

-Primeiro, há que se afirmar que em lugar algum se chega ao contrapor um mito (Gnosticismo) por outro (Cristianismo), uma fantasia por outra, a não ser a argumentos, igualmente, fantasiosos. Mas, por amor ao debate e ao divertido que a fantasia possa ser, vamos adiante.

-Na sequência, é bom lembrar que recorrer a argumentos "científicos", como intentou Tertuliano, pouco significa, pois, além da Ciência ser, ela própria, uma crença (segundo a Filosofia da Ciência ou, antes, a Teoria do Conhecimento, "conhecimento" nada mais é que crença verdadeira justificada) sujeita ao subjetivismo e manipulações políticas de toda ordem, as evidências próprias da Religião, seu objeto e matéria constitutiva (independentemente de eu os considerar devaneios ou não) não são acessíveis aos métodos científicos, pelo simples fato de a Ciência, como tal, ter se insurgido no século XVI contra a metafísica reinante em toda a Idade Média (ainda que não tenha se livrado dela completamente) com a proposta de se ater ao que é material, não servindo, portanto, a provas e refutações do que seja imaterial (ainda que a Física teórica possa parecer assim). Se há matéria intelectual assim utilizada, não merece a alcunha de "Ciência", talvez "Alquimia", "Ciências Ocultas", "Mística", "Epistemologia", "Metafísica" ou algo que o valha, mas não "Ciência" na acepção pela qual ela se notabilizou como origem do "conhecimento verdadeiro" e pela qual é convidada, ingenuamente, a validar todos os tipos de conhecimentos dede o século XVI, particularmente, se considerarmos que a "Ciência" que antecedeu o século XVI em nada se confunde com a que conhecemos hoje. Qualquer que seja a situação, a firmação de que Tertuliano "explicou cientificamente em seu De Praescriptione haereticorum" alguma coisa, cai no vazio da retórica.

-O texto "A suma refutação da Gnose espúria" é um texto, aparentemente, bem construído, mas chamo a atenção para o "aparentemente". Sua argumentação não se atém à explicitação do contraditório, ela não busca ruir com as bases do argumento gnóstico, como convém ao bom argumento filosófico ou mesmo científico, mas tão simplesmente se preocupa em anunciar sua doutrina em oposição à doutrina gnóstica, utilizando do recurso sofístico denominado "argumento de autoridade", no qual cita as afirmações de personalidades com reconhecido valor no meio cristão, o que para os crentes é suficiente como contraprova àquilo que pretendem refutar, não necessitando ser consideradas quaisquer hipóteses alternativas como, igualmente, detentoras de validade e verdade, ainda que não se tenha uma evidência material ou lógica contra elas. O fato de bispos, apóstolos, santos, papas, etc não terem ensinado, conhecido ou concordado com os ensinamentos gnósticos não significa per se sua invalidade ou inverdade, mas tão somente uma divergência de crenças e paradigmas.

- A afirmação prescritiva de que "é inútil ouvir os argumentos...pois temos uma série de provas antecedentes de que...não podem merecer audiência" é a prova mais cabal de que a postura de Tertuliano jamais pode ser considerada científica ou mesmo filosófica, mas tão somente teológica, doutrinária e intransigente. Considerar que existe um argumento prévio fundante irrefutável é uma das primeiras coisas contra a qual a Ciência se posicionou a partir do século XVI e isto se apoia, entre outras coisas, sobre o princípio do regresso ao infinito, algo defendido pela Filosofia desde a Grécia Antiga (anterior a Cristo, portanto...ou melhor, anterior à época em que, pretensamente, nasceu alguém que foi chamado de Jesus). O regresso ao infinito pressupõe que sempre será possível dar um passo para trás na justificação de um argumento, o que nos coloca de frente a outro argumento anterior e assim sucessivamente, até o ponto em que os debatedores concordem com um pressuposto comum e partam dali pra frente na construção de "verdades" que tenham tal argumento como base fundante de tudo o que for dito em diante. Assim, considerar que um argumento contrário não merece ser ouvido é a mais clara postura autoritária que um intelectual pode assumir, talvez, pelo medo de ser desmascarado em razão de não possuir uma contra-argumentação, minimamente, satisfatória e convincente, sendo mais fácil negar qualquer hipótese alternativa possível, sem questionar e, assim, em nome da fé, se assassina a curiosidade e o uso da razão. É essa a estrutura que sustenta toda e qualquer religião (a Gnosis não é diferente!).

-Alegar que algo é verdade, simplesmente, por ser antigo é a mais pura ingenuidade intelectual e política que um ser humano pode enunciar! "Uma mentira de muito contada verdade se torna" já diz o dito popular. Uma "verdade" é mero fruto da ausência de outras "verdades" que a refutem e depende da rede de indivíduos que se aglomeram em torno dela defendendo-a e de seu poder político para evitar que outras "verdades" solapem sua soberania. A exemplo, veja-se o caso de Galileu, obrigado a abjurar, publicamente, o heliocentrismo e manter a teoria geocêntrica (mais forte, politicamente), ainda que seus estudos tivessem sido incentivados e financiados pelo próprio Papa Urbano VIII, que teve que ceder às forças políticas internas da Igreja Católica e retirar seu apoio a Galileu, levando-o a julgamento. Veja como uma "verdade" mais nova foi, politicamente, manipulada por uma doutrina ("verdade") autoritária, mais antiga e, intelectualmente, falha.

-Para finalizar, deixo explícita minha discordância tanto em relação ao argumento católico, quanto gnóstico, ou a qualquer argumento religioso por seu apego a estruturas de pensamento constituídas em uma época de pouco conhecimento objetivo sobre a natureza e eivado de fantasias e misticismos (que era o que se tinha à mão à época) e sua simples e flagrante ausência de bom senso, dado os recursos intelectuais, filosóficos e científicos atuais.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Ciência e Religião: relações espúrias

Por Walner Mamede





O Presente texto é uma crítica a afirmações polêmicas do afamado cientista indiano Amit Goswami em entrevista ao Roda Viva, no vídeo que pode ser encontrado no endereço https://youtu.be/e-aDYAezrps e que se encontra aqui anexo. Nele o cientista estabelece conexões entre conceitos científicos e conceitos religiosos, trazendo elementos da Física Quântica. Conforme o Roda Viva "Amit Goswami, considerado um importante cientista da atualidade...tem instigado os meios acadêmicos com sua busca de uma ponte entre a ciência e a espiritualidade. Ele vive nos EUA, é PhD em física quântica e professor titular da Universidade de Física de Oregon. Há mais de 15 anos está envolvido em estudos que buscam construir o ponto de união entre a física quântica e a espiritualidade. Já foi rotulado de místico pela comunidade científica, e acalmou os críticos através de várias publicações técnicas a respeito de suas idéias. Em seu livro "O Universo Auto-Consciente" ele procura demonstrar que o universo é matematicamente inconsistente, e sem existência de um conjunto superior, no caso Deus. E diz que se esses estudos se desenvolverem, logo no início do terceiro milênio, Deus será objeto da ciência e não mais da religião". Acerca de suas afirmações, seguem minhas considerações.

Afirmar que o processo criativo não se dá por vias racionais não é o mesmo que aceitar sua origem em Deus ou dizer que deuses existem. Não foi isso que Einstein quis dizer isso ao se referir à origem não meramente racional da Teoria da Relatividade, nem ao menos é o que ele quer dizer quando afirma algo utilizando o nome de Deus. Einstein não está fazendo uma apologia ao Deus transcendente, sobrenatural, mas a apenas utilizando o conceito cultural de forma retórica, para se fazer entender e congregar sob esse conceito o que a Ciência chama de “acaso”, “probabilidade”, “refutabilidade” em decorrência do próprio método indutivo que a sustenta na produção de seu conhecimento.

Além disso, Amit parte do pressuposto de que, por não ser material, a mente ou “consciência quântica” pertencem ao transcendente, reintroduzindo uma metafísica sobrenatural na Ciência e justificando-a a partir daí, como se o fato de cientificizar o misticismo fosse fazer dele uma verdade. Ao contrário, a Ciência não lida com verdades absolutas, esse é o campo da Religião. Trazer algo para o campo da Ciência é dizer “olha, estou afirmando isso, mas, em alguma medida, eu posso estar, redondamente, enganado”. A Ciência reconhece isso em seus postulados. Se isso não pode ser dito acerca de um conhecimento qualquer, não pode ser tido como científico. E Goswami, quando estabelece seus pressupostos de “consciência quântica” e “causação descendente” para explicar as ocorrências no mundo material, se omite, completamente, a respeito de hipóteses alternativas que explicariam tão bem ou melhor as mesmas ocorrências, à semelhança da Religião. 

Podemos contra-argumentar que a Ciências, muitas vezes, faz o mesmo, mas quem disse que por ser científico algo é verdade? Ao contrário, a epistemologia que teorias como a do ator-rede traz mostra que todas as postulações científicas estão carregadas de negociações políticas entre cientistas e não-cientistas para serem aceitas como verdade (ainda que temporária) e superarem suas hipóteses concorrentes. Então, ao contrário do que o senso comum (e incluo aí a percepção que o próprio Goswami possui de “Ciência”) acha, ingenuamente, conhecimento científico não é sinônimo de “verdade” ou “realidade” e sim, apenas, uma possibilidade dessa “verdade”.

Apesar de se apresentar como não-dualista, ao afirmar que a “consciência humana dança com a consciência cósmica” (ou Deus) para determinar as ocorrências no mundo material, Amit me lembra as postulações de Descarte para justificar o salto entre a mente e Deus na busca da verdade. Além disso, Amit parte da Física Quântica e tece uma teoria religiosa dizendo que ainda é sobre Física Quântica que está falando, mas não é e isso precisa ficar claro, pois é um uso leviano de conceitos científicos em uma retórica mística, que traz certo conforto, mas que está longe de ser Ciência (apesar de isso não ser demérito).

Para finalizar, enfatizo a necessidade de estarmos atentos aos usos indevidos do conceito de "Ciência" com o fito de se legitimar este ou aquele conhecimento, escorando-se no status dessa área do conhecimento humano na atualidade e, portanto, lançando-se mão de uma espécie de "argumento de autoridade" que, longe de trazer benefícios, nos leva a comprar felídeos por leporídeos!

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Considerações sobre o estupro...





Esta imagem tem causado polêmica. Vários são os que mal interpretam a expressão "pedindo para ser estuprada", sejamos mais analíticos e menos apaixonados em nossas opiniões! A expressão, qdo bem usada, não quer dizer pedir no sentindo de desejar como meta. É como muita gente, incluso eu, já deve ter ouvido de seus pais "menino, vc tá pedindo para apanhar!". Quem, em sã consciência, pede para apanhar dos pais?! "Pedir", nesse caso, possui a conotação de "vc está se colocando em situação de...", ainda que a pessoa não o faça conscientemente! Somente na cabeça de um doente a expressão "pedindo para ser estuprada" justificaria o ato e assumiria a conotação de desejo consciente e premeditado! Bem dito isso, metade dos posicionamentos sobre o assunto pode ser desconsiderada, já que sua premissa seria essa...um equívoco conceitual sobre a expressão "pedindo para ser estuprada"...Descartada essa hipótese, pensemos na direção que me parece ser a mais próxima de uma lucidez: se a ameaça existe, o mínimo que podemos fazer é nos precaver! Quem de nós se expõe em ruas escuras e isoladas sabendo do perigo? Ladrões, assassinos, espancadores existem, sempre existiram e vão continuar existindo. É nosso direito andar como, quando e onde quisermos, mas sabendo da existência deles, não nos colocamos em situação de risco, acreditando em nossos direitos civis e levantando uma bandeira em sua defesa. Qual de nós já disse a alguém que ele deve colocar um terno, um relógio caro e sair com a carteira cheia de dinheiro pelas quebradas à noite, como forma de demarcar seu direito de ir e vir? Usar o discurso de direito absoluto da mulher se vestir como quer, onde quiser, quando quiser é tão irresponsável quanto legitimar ou justificar o estupro por causa de suas roupas!!! O que precisamos ter em mente é que cada local, cada ocasião pede um tipo de roupa e se vc mulher estará em um local ou uma ocasião que o tipo de roupa pode expô-la ao perigo, por favor, tenha bom senso e não vista, lembre-se, "a ocasião faz o ladrão", é o dito popular. Outra coisa, muitas vezes, o estupro não ocorre no momento em que a mulher está com roupas ousadas, mas sim em decorrência do uso dessas roupas em outra ocasião, o que atraiu o maluco. O estupro não ocorre pela mera existência do estuprador ou apenas pelo uso de roupas e comportamentos sensuais, é necessário que essas duas variáveis confluam com a oportunidade e estejam inseridas em um contexto, claro! Mas tenhamos em mente que quanto mais variáveis relacionadas a um evento apresentarem-se simultaneamente, maior a probabilidade de ocorrência desse evento. Apesar de os dados estatísticos existentes sobre a correlação entre vestuário e ocorrência de estupro não serem conclusivos e existirem críticas quanto à significância, à metodologia de obtenção e mesmo à sua cientificidade, lembremos que nem tudo que orienta nossas condutas se baseia na Ciência e que o senso comum é, às vezes e com parcimônia, mais eficiente à sobrevivência, sendo ele que garantiu à espécie humana se manter onde outras falharam e ainda pode nos ser bastante útil. Negligenciar isso e negar tal informação às massas acusando-a de “discurso machista” é, no meu entender, desonestidade intelectual e irresponsabilidade social com grave viés ideológico que acaba por transformar questões diversas, amplas e gerais em questão de gênero com uma abordagem reducionista e unilateral, muitas vezes, sofista (a exemplo, leiam http://maisquepalavrasentimento.blogspot.com.
br/2014/01/o-machismo-nosso-de-cada-dia.html
). Abordando a questão por um prisma biológico (e essa é a pedra no sapato de qualquer partidário radical das Ciências Socio-Humanas), temos ainda que todos possuímos instintos que antecedem a Ciência e as próprias normas sociais. O estuprador é o cara que, desarrazoadamente e à revelia do que poderia ser ética e cientificamente esperado, se rendeu aos instintos em detrimento das regras de bom comportamento e os instintos são provocados por um gatilho, no caso, a exposição sensual do corpo. Não faço aqui a apologia ao estupro ou sua justificação culpabillizando a mulher estuprada por seu estilo indumentário. Repetindo: a mulher não é culpada pelo próprio estupro, mesmo porque ela não é a única variável interveniente (e aqui podemos recorrer ao conceito de variável antecedente e variável critério) no processo e isso seria mero julgamento moral. Mas não podemos, simplesmente, negar uma correlação causal (sempre entendendo “causa” como algo multifatorial e contextualizado) que independe das normas sociais, legais, morais ou lógicas, é alheia a qualquer tipo de qualificação do discurso como machista ou feminista, simplesmente porque defendemos o direito feminino de escolher suas roupas. Reconhecer tal relação não vai contra esse direito. Utilizar tal relação para desqualificar a mulher é que fere seus direitos e representa um mal uso do conhecimento. Independentemente do reconhecimento ou não de uma correlação entre vestimenta e estupro e de a mulher possuir ou não direitos, o estupro ocorre e vai continuar ocorrendo, assim como o roubo, o latrocínio, o assassinato e outros crimes, pois nossa sociedade é incompetente para educar seus filhos, nosso sistema policial é inepto para prevenir os crimes e nosso judiciário é inábil na punição dos casos concretos. Então, quem não se adapta ao contexto se coloca em situação de risco e isso, por mais injusto que possa parecer, é uma lei de sobrevivência que antecede qualquer sociedade e precisamos ficar atentos a ela!!! Podemos, sim, lutar por justiça e liberdade, mas sem a inconsequência que vislumbro na maioria dos discursos...Quem sabe, algum dia, possamos todos andar como queremos e ser o que quisermos sem julgamentos e agressões? Um dia, talvez, mas não hoje...


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Já se perguntou?

Por Vinicius Mamede S. Chaer

Certamente muita gente já se perguntou como realmente as coisas acontecem. A questão muito provavelmente intriga ateus e também religiosos mais atenciosos. “Acontecem por ‘vontade’ de Deus”, diria qualquer pessoa de fé. Mas, mesmo para os que creem, como exatamente se manifestaria a vontade divina? Ao longo da história, a humanidade foi desvendando mistérios do espaço, da matéria e da vida. A certa altura tornou-se crucial a compreensão do funcionamento subatômico, porque ele é, de fato, a mais essencial das respostas sobre como as coisas se dão no mundo físico, onde tudo o que existe é feito de partículas. Imprescindível também, caso se queira repostas tão fundamentais, é o estudo da mente: o funcionamento do cérebro humano, a mais espetacular das máquinas, e os limites de sua relação com a física.

Voltando a tempos pré-iluministas, dois dos grandes atores do racionalismo filosófico, o francês Renê Descartes e o holandês Baruch Espinosa divergiram quanto à concepção de mundo. Para o primeiro havia a transcendência: o todo era dividido entre o mundo físico e o mental/espiritual. Portanto, para Descartes, a mente humana, algo intangível e transcendente, influía no mundo físico e era por este influenciada, mas essencialmente de modo independente. Espinosa, por seu lado, concebia o mundo da imanência, visão que insere até mesmo o pensamento na realidade física. O chamado monismo – contraposição ao dualismo de Descartes - do filósofo holandês definia Deus como sendo o todo, físico e mental/espiritual, resumido na palavra substância. Para Espinosa, a lei que regia o mundo da mente ou do espírito era a mesma que o fazia no mundo físico, ou seja, a lei da causalidade universal.

Causalidade – cadeia de causa e efeito, diferente de casualidade – pressupõe determinação: a cada acontecimento é atribuída uma causa, que por sua vez já fora efeito de outra causa. De certo modo, o efeito está contido na causa e apenas “aguarda” qualquer lei natural, além do curso do tempo, para acontecer. Com efeito, conhecendo-se todas as variáveis de um sistema qualquer, nesta concepção determinista é possível antever o futuro.

Sobre o aspecto transcendente da mente humana, renascido modernamente do pensamento cartesiano, alguns séculos depois de Descartes algumas dúvidas essenciais ainda pairavam – e pairam! - sobre as teorias do pensamento, especialmente aquelas que gravitavam entorno do Behaviorismo, a teoria do comportamento. Até que ponto as imagens e significados da mente, inclusive os mais subjetivos, poderiam ser expressos no comportamento, e, mais além, redutíveis à matéria, à bioquímica? Behavioristas foram revistos e criticados, especialmente por linguistas no século XX, que propunham maior atenção à subjetividade. Já Antônio Damásio, contemporâneo e importante neurologista português, tem obra destacadamente defensora da redutibilidade acima citada sem necessariamente desconsiderar as subjetividades da mente.

Damásio, em seu famoso livro “O erro de Descartes”, descreve experimento inicialmente acidental, de um operário gravemente ferido na cabeça e milagrosamente recuperado sem danos motores ou cognitivos, mas que em seguida apresentou alterações de caráter: tornou-se, de acordo com todos os que o cercavam, pessoa pouco confiável, de poucos valores, bem diferente do que fora a vida toda. Estava comprovada a influência da bioquímica cerebral em variáveis psíquicas, inclusive algumas relacionadas ao caráter e à moral, antes atribuídas a fenômenos espirituais, ou ao menos estritamente subjetivas. É possível afirmar que Damásio trouxe Baruch Espinosa à tona por meio de seu trabalho científico, ainda que distante, obviamente, de modelos acabados de determinismo ou materialismo psíquicos.

A física do século XX, quase sempre revolucionária e um tanto avessa à intuição humana, foi assombrada pelas descobertas das teorias quânticas, como o Princípio da Incerteza. A descoberta do físico alemão Werner Heisenberg demonstrou que o comportamento das partículas no interior de um átomo não obedece qualquer determinação previsível ou explicável pela mecânica até então conhecida, mesmo pela Teoria da Relatividade, como seria de se esperar – previsibilidade - na lei da causalidade. Algumas das curiosas descobertas mostraram também que são praticamente impossíveis aferições e observações mais precisas e completas que não interfiram no comportamento das partículas.

O indeterminismo, que já se alastrava pelas ciências naturais, foi aos pouco sendo compreendido - ou domesticado - pela já velha teoria matemática das probabilidades, com contribuições importantes do físico alemão Max Born na altura do século XX. A probabilidade, de certo modo, torna possível um relativo “controle de resultados” ao se lidar com indeterminações e com o acaso. O um exemplo clássico, e que alude de modo simples a ideias complexas, é o caso do lançamento de uma moeda – cara ou coroa -, do qual se conclui que ao final de vários lançamentos a expectativa é que dê aproximadamente metade cara e metade coroa, mas nunca se sabe com certeza de que lado cairá a moeda num lançamento específico. Contudo, foi numa carta endereçada a Born que o grande Albert Einstein, um determinista e espinosano quase convicto, incluiu a famosa frase “Deus não joga dados”.

Probabilismo ou determinismo? Voltemos ao século XVIII com o considerado pai da Teoria das Probabilidades, o matemático francês Pierre Simon de Laplace, que elaborou, na forma de uma hipótese mental, sobre a existência de um demônio – não no sentido místico e maligno do termo -, o Demônio de Laplace, que por sua vez seria demasiadamente sabido. Sua capacidade seria tão grande, tão universal, que conseguiria conhecer todas as condições de qualquer objeto ou fenômeno, a qualquer tempo, em toda parte. Como também conheceria todas as leis da natureza, seria então capaz de prever toda e qualquer parte do futuro.

A sagacidade e intuição do velho Laplace nos fazem perguntar: 1) Não sabemos se dará cara ou coroa num lançamento específico porque estamos diante de uma possibilidade realmente aberta e provável ou simplesmente porque não somos capazes de calcular com absoluta precisão todas as variáveis do lançamento, tais como pesos, forças, tempos, distâncias, ângulos da moeda a cada instante, superfícies, etc.? 2) A probabilidade não seria apenas epistemológica, ou seja, pertinente ao espaço de alcance do conhecimento humano? 3) Albert Einstein estava correto ao desconfiar até certo ponto do indeterminismo, e ao demonstrar certo incômodo com as teorias quânticas?

A ciência contemporânea, sobretudo a física quântica, é muito mais probabilista do que determinista. E tem boas razões para isto. O impacto nas demais ciências, inclusive as biológicas e humanas, é enorme. No dia a dia, é bastante recomendável a compreensão das probabilidades, o que pode até contribuir com controle de ansiedades – como o medo de avião - e com escolhas mais sábias na vida ou na profissão. É interessante tentar se livrar de certa obsessão pela busca de nexo causal entre quaisquer eventos correlacionados. No entanto, não dá para descartar, se formos atentos à história da ciência, a possibilidade futura de qualquer outra grande virada na compreensão mais essencial do mundo físico, como em certa escala fez Damásio no estudo da mente, mal comparando.

Seria possível, um dia, além das tentativas bem sucedidas da interessantíssima Teoria do Caos, o casamento completo e definitivo da mecânica quântica com a relatividade, quem sabe, ainda mais além, recuando um tanto à visão determinista? Ou, por outro lado, seriam possíveis explicações que cabal e definitivamente reafirmem e expandam o probabilismo subatômico para fora do círculo epistemológico? Até aonde pode chegar o estudo da mente, suas conclusões sobre os limites da autonomia humana ao agir e sobre o alcance da relação de neurônios com imagens subjetivas, impactantes ou não no comportamento?

Segundo Karl Popper, filósofo de ciência austríaco do século XX, a verdade se alcança por lances sucessivos e nunca completamente. Contudo, ainda que não se tenha a utópica expectativa de uma “teoria de tudo”, muito menos definitiva, as perguntas do parágrafo anterior são fundamentais para quem, mais atento, percebe o impacto de tais questões – e das respostas que nos damos - no modo como vemos a vida, no real significado do livre arbítrio e, entre outras coisas importantes, no modo como concebemos a fé.


sábado, 11 de janeiro de 2014

Pequenas considerações sobre o autismo

Walner Mamede

A única coisa na qual somos iguais é na diferença. Contudo, umas características, mais que outras, possibilitam uma maior eficiência social. O autismo é uma diferença em que e em qual nível? Como definir quem é e quem não é autista? A mera consideração do termo "autista" cria uma categoria que se auto-exclui a partir de uma lista de características que o definem e o diferenciam do que é "normal". Aqui caberia a pergunta: quem é mais eficiente na sociedade? A resposta a esta pergunta seria determinante do status social do indivíduo? Se sim, está estabelecida a discriminação, se não, podemos abrir mão de expectativas quanto a resultados sobre qualquer indivíduo na sociedade, em qualquer situação, aceitando de bom grado o que quer que produza, no nível que seja. Isso é possível? Não vislumbro uma terceira possibilidade.

 Se a diferença impede o indivíduo de realizar esta ou aquela tarefa ele possui uma deficiência em relação a outro indivíduo que a realiza e este uma deficiência em relação a outro indivíduo melhor. Não há como fugir a este conceito, a não ser por eufemismos e reducionismos filosóficos dirigidos a interesses particulares. Se existe neurodiversidade e não deficiência ou doença, não existe autismo, pois, traçando-se um continuum do "mais atípico" ao "mais típico" veremos tantas matizes e tantas sobreposições que será impossível caracterizar este ou aquele como autista, Down, Asperger, normal e etc, ruindo a própria noção de "identidade autista" defendida pelo "orgulho autista", uma posição tão política e arbitrária quanto a discriminação do autismo e sua própria caracterização ou graduação. Se existem graus de autismo que demandam cura por sua condição incapacitante, isso caracteriza uma deficiência (mental, no caso) e é muito cômodo aos "quase-normais" requerer uma desmedicalização do problema, descaracterizando o autismo como deficiência para que sejam socialmente aceitos às custas daqueles menos funcionais. Acredito que, logo, aqueles que se encontram no espectro mais funcional buscarão uma outra categoria na qual se enquadrar para, assim, se libertarem do "peso morto".

Defensores do autismo como "estilo de vida" e não como doença a ser curada, afirmam que tentar curar um autista (condição atípica) é tão absurdo quanto tentar curar um indivíduo normal de sua "normalidade" (condição típica). Entretanto, o argumento é furado. Mantendo-se o paralelismo da argumentação, se um "neurotípico" (normal) deve ser curado, a cura completa se encontra no extremo oposto, em direção ao lado menos funcional da "neuroatipia" (autismo em alto grau). Se isso me possibilitar a sobrevivência autônoma, com maior eficiência social e maior qualidade de vida e não comprometer a coesão social, ok, eu quero ser curado. Caso contrário, onde estou é melhor. Não há um dilema ético verdadeiro aqui, apenas uma retórica sofista. Alegam, também que as propostas de cura levam o autista a se sentir insultado. Se o indivíduo é capaz de perceber o insulto, não se encontra em posição de julgar uma proposta de cura para aqueles que são incapazes de tal percepção (autismo em alto grau), estão falando pelos outros e não estão respeitando o próprio lema "por autistas para autistas", que deveria ser melhorado como "por autistas em grau x para autistas no mesmo grau", isso sim seria um processo participativo da ação política, mas é possível? O autista capaz de falar por si mesmo é aquele que está no espectro mais funcional da atipia e esses, claro, não querem ser vistos como doentes pois possuem funcionalidade e eficiência social, querem ser aceitos como são e negam a diversidade dentro de sua própria condição atípica, afirmando uma universalidade inexistente do autismo. Poderíamos compará-los aos judeus que, conforme Hannah Arendt, sendo ricos e gozando de um status econômico superior, não lutavam pela condição de nacionais no país em que moravam e assumiam uma posição de "orgulho judeu", comprometedora do status de seus pares menos abastados e de seu próprio futuro. Assim, os judeus teriam assumido posição semelhante aos autistas, bradando orgulho pela condição em que se encontravam na Europa pré-Grande Guerra, e isso os tornou vulneráveis à exclusão promovida por Hitler, quando perderam sua utilidade como financiadores da elite com o surgimento dos Estados-Nação. A manutenção de um "orgulho judeu", desprezando a possibilidade de obterem nacionalidade e cidadania por defenderem sua própria identidade como uma bandeira, os colocou em uma situação de desprezíveis e dispensáveis na nova ordem social. A diferença seja talvez que os autistas (assim como os surdos, há mais tempo) não abrem mão de sua nacionalidade, estabelecendo um vínculo jurídico e de cidadania com o país no qual vivem. Contudo, autistas de alta funcionalidade, assim como os judeus do alto escalão fizeram de forma menos evidente, arrogam para si o direito de insurgirem como porta-vozes de toda a população autista, buscando afirmar sua própria identidade às custas dos demais. Esta representaria uma incapacidade de se colocar no lugar do outro e de acolher o maior número de perspectivas para a tomada de decisão em uma verdadeira ação política, conforme Hannah Arendt.

Reconhecer a necessidade de categorização da realidade como estratégia de sobrevivência em nada se confunde com a crítica às categorias estabelecidas e reificadas por nossas limitações e hábitos, as quais acabam redundando em leis equivocadas. O truque é, apesar de reconhecê-las como legítimas e necessárias, estar aberto à ideia de que não devem ser universais e definitivas, que suas fronteiras são mais permeáveis e nebulosas do que aparentam a uma primeira análise e que o tema proposto não é tão consensual quanto parece ser.

Os estudos da deficiência buscam romper com categorias pre-definidas que definem o homem a partir de conceitos universais fora do que Kant e, depois dele, Hannah Arendt chamariam de conceitos reflexivos (análise do particular despindo-se de conceitos prévios), estes relacionados a uma flexibilidade intelectual na análise do real. Fazer isso significa não reconhecer os limites arbitrários de uma categoria que define algo por características, convenientemente, escolhidas dentre tantas outras. Simplesmente, dizer que autismo não é deficiência mental é, ao mesmo tempo, reafirmar que existe uma categoria universal que define "deficiência mental" e que autismo não é isso porque se inclui em outra categoria também universal. A rigor, nada rompe, apenas reproduz o que se quer combater imputando a outros o que não quer para si, dentro do paradigma positivista. A meu ver, o ideal seria analisar o particular pelo particular, o que daria a cada um de nós uma sigularidade não existente no outro, pelo simples fato de que em tudo somos diferentes e de que as pretensas "categorias cientificamente determinadas" são meras arbitrariedades destinadas à previsão e controle da realidade, fundadas na racionalidade científica nascida no século XVI e que não dão conta da complexidade do real, levando-nos a decisões e condutas escoradas em uma visão limitada e reducionista. Contudo, como lidar com a coisa pública e políticas sociais sem fragmentar a sociedade em categorias universais que facilitem a tomada de decisões? Apenas o tempo nos dirá (o artigo disponível em http://www.scielo.br/pdf/csc/v14n1/a12v14n1.pdf, complementa minhas reflexões apenas superficiais e pouco sistemáticas aqui disponibilizadas).