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quinta-feira, 7 de agosto de 2014

A Suma Refutação à Gnose Espúria: uma abordagem mais racional da matéria


Walner Mamede

Faço aqui menção ao texto “The [original] Catholic Encyclopedia (excertos), A Suma Refutação à Gnose Espúria, 1910; trad. br. por F. Coelho, São Paulo, ag. 2014, blogue Acies Ordinata, http://wp.me/pw2MJ-2ko”, cuja conclusão segue abaixo. Minhas considerações vêem logo a seguir.

...A tentativa de pintar o gnosticismo como um movimento poderoso da mente humana rumo à verdade mais nobre e alta, um movimento de algum modo paralelo ao do Cristianismo, fracassou completamente. Foi abandonada pelos estudiosos recentes não tendenciosos… O gnosticismo não foi um avanço, foi retrocesso…

Tentou fazer, para o Oriente, o que o neoplatonismo tentou fazer para o Ocidente. Durante ao menos dois séculos, foi um verdadeiro perigo para o Cristianismo, embora não tão grande quanto alguns escritores modernos quereriam fazer-nos crer, como se um fio de cabelo pudesse ter mudado os destinos do cristianismo [para] gnóstico, em oposição a ortodoxo. Coisas semelhantes foram ditas do mitraísmo e do neoplatonismo, em contraposição à religião de Jesus Cristo. Mas tais afirmações têm mais de picantes que de verdade objetiva.

O Cristianismo sobreviveu, não o gnosticismo… e nenhuma quantidade da literatura teosofística que inunda os mercados…poderá dar vida ao que pereceu por defeitos intrínsecos, essenciais.
É notabilíssimo que os dois primeiros campeões do Cristianismo contra o gnosticismo — os santos Hegésipo e Ireneu — tenham exposto tão claramente o único método de combate possível, mas que também bastava por si só, para assegurar a vitória no conflito, um método que, poucos anos depois, Tertuliano explicou cientificamente em seu De Praescriptione haereticorum.

Tanto Hegésipo quanto Ireneu provaram que as doutrinas gnósticas não pertenciam àquele depósito da fé que era ensinado pela verdadeira sucessão dos bispos nas principais sés da Cristandade; os dois fizeram, como conclusão triunfante, uma lista dos bispos de Roma, desde Pedro até o Bispo de Roma do tempo deles; como o gnosticismo não era ensinado por aquela Igreja, com a qual os cristãos de toda parte estão obrigados a concordar, ficava autocondenado.» (ARENDZEN, VI, 602)...”

Para ler mais: http://wp.me/pw2MJ-2ko


Pois bem...seguem minhas considerações:

-Primeiro, há que se afirmar que em lugar algum se chega ao contrapor um mito (Gnosticismo) por outro (Cristianismo), uma fantasia por outra, a não ser a argumentos, igualmente, fantasiosos. Mas, por amor ao debate e ao divertido que a fantasia possa ser, vamos adiante.

-Na sequência, é bom lembrar que recorrer a argumentos "científicos", como intentou Tertuliano, pouco significa, pois, além da Ciência ser, ela própria, uma crença (segundo a Filosofia da Ciência ou, antes, a Teoria do Conhecimento, "conhecimento" nada mais é que crença verdadeira justificada) sujeita ao subjetivismo e manipulações políticas de toda ordem, as evidências próprias da Religião, seu objeto e matéria constitutiva (independentemente de eu os considerar devaneios ou não) não são acessíveis aos métodos científicos, pelo simples fato de a Ciência, como tal, ter se insurgido no século XVI contra a metafísica reinante em toda a Idade Média (ainda que não tenha se livrado dela completamente) com a proposta de se ater ao que é material, não servindo, portanto, a provas e refutações do que seja imaterial (ainda que a Física teórica possa parecer assim). Se há matéria intelectual assim utilizada, não merece a alcunha de "Ciência", talvez "Alquimia", "Ciências Ocultas", "Mística", "Epistemologia", "Metafísica" ou algo que o valha, mas não "Ciência" na acepção pela qual ela se notabilizou como origem do "conhecimento verdadeiro" e pela qual é convidada, ingenuamente, a validar todos os tipos de conhecimentos dede o século XVI, particularmente, se considerarmos que a "Ciência" que antecedeu o século XVI em nada se confunde com a que conhecemos hoje. Qualquer que seja a situação, a firmação de que Tertuliano "explicou cientificamente em seu De Praescriptione haereticorum" alguma coisa, cai no vazio da retórica.

-O texto "A suma refutação da Gnose espúria" é um texto, aparentemente, bem construído, mas chamo a atenção para o "aparentemente". Sua argumentação não se atém à explicitação do contraditório, ela não busca ruir com as bases do argumento gnóstico, como convém ao bom argumento filosófico ou mesmo científico, mas tão simplesmente se preocupa em anunciar sua doutrina em oposição à doutrina gnóstica, utilizando do recurso sofístico denominado "argumento de autoridade", no qual cita as afirmações de personalidades com reconhecido valor no meio cristão, o que para os crentes é suficiente como contraprova àquilo que pretendem refutar, não necessitando ser consideradas quaisquer hipóteses alternativas como, igualmente, detentoras de validade e verdade, ainda que não se tenha uma evidência material ou lógica contra elas. O fato de bispos, apóstolos, santos, papas, etc não terem ensinado, conhecido ou concordado com os ensinamentos gnósticos não significa per se sua invalidade ou inverdade, mas tão somente uma divergência de crenças e paradigmas.

- A afirmação prescritiva de que "é inútil ouvir os argumentos...pois temos uma série de provas antecedentes de que...não podem merecer audiência" é a prova mais cabal de que a postura de Tertuliano jamais pode ser considerada científica ou mesmo filosófica, mas tão somente teológica, doutrinária e intransigente. Considerar que existe um argumento prévio fundante irrefutável é uma das primeiras coisas contra a qual a Ciência se posicionou a partir do século XVI e isto se apoia, entre outras coisas, sobre o princípio do regresso ao infinito, algo defendido pela Filosofia desde a Grécia Antiga (anterior a Cristo, portanto...ou melhor, anterior à época em que, pretensamente, nasceu alguém que foi chamado de Jesus). O regresso ao infinito pressupõe que sempre será possível dar um passo para trás na justificação de um argumento, o que nos coloca de frente a outro argumento anterior e assim sucessivamente, até o ponto em que os debatedores concordem com um pressuposto comum e partam dali pra frente na construção de "verdades" que tenham tal argumento como base fundante de tudo o que for dito em diante. Assim, considerar que um argumento contrário não merece ser ouvido é a mais clara postura autoritária que um intelectual pode assumir, talvez, pelo medo de ser desmascarado em razão de não possuir uma contra-argumentação, minimamente, satisfatória e convincente, sendo mais fácil negar qualquer hipótese alternativa possível, sem questionar e, assim, em nome da fé, se assassina a curiosidade e o uso da razão. É essa a estrutura que sustenta toda e qualquer religião (a Gnosis não é diferente!).

-Alegar que algo é verdade, simplesmente, por ser antigo é a mais pura ingenuidade intelectual e política que um ser humano pode enunciar! "Uma mentira de muito contada verdade se torna" já diz o dito popular. Uma "verdade" é mero fruto da ausência de outras "verdades" que a refutem e depende da rede de indivíduos que se aglomeram em torno dela defendendo-a e de seu poder político para evitar que outras "verdades" solapem sua soberania. A exemplo, veja-se o caso de Galileu, obrigado a abjurar, publicamente, o heliocentrismo e manter a teoria geocêntrica (mais forte, politicamente), ainda que seus estudos tivessem sido incentivados e financiados pelo próprio Papa Urbano VIII, que teve que ceder às forças políticas internas da Igreja Católica e retirar seu apoio a Galileu, levando-o a julgamento. Veja como uma "verdade" mais nova foi, politicamente, manipulada por uma doutrina ("verdade") autoritária, mais antiga e, intelectualmente, falha.

-Para finalizar, deixo explícita minha discordância tanto em relação ao argumento católico, quanto gnóstico, ou a qualquer argumento religioso por seu apego a estruturas de pensamento constituídas em uma época de pouco conhecimento objetivo sobre a natureza e eivado de fantasias e misticismos (que era o que se tinha à mão à época) e sua simples e flagrante ausência de bom senso, dado os recursos intelectuais, filosóficos e científicos atuais.

Um comentário:

  1. 1) O embate entre doutrinas foi de tanta importância para os séculos que se seguiram à morte de Cristo que ignorar ou desdenhar o fato tentando reduzi-lo ao mero embate entre igualmente mitos é quase um crime de lesa-humanidade.

    2) Querer julgar a intenção do artigo ou do autor Tertuliano como "científica" para menosprezá-la em comparação a um conceito moderno de ciência (qual? o crítico Walner não se deu ao trabalho) é ignorar completamente a esfera de verdades de que são tratadas no artigo. É ignorar o que os antigos supunham fazer ao debaterem, pois julgavam estar defendendo a verdade contra o erro. E o conhecimento da verdade era meta do filósofo, desde Sócrates ou antes, até Tertuliano, Agostinho, Tomáz, ou até mesmo Descartes. Já de Kant para cá a coisa se complica, pois o senso comum é abandonado e depois deturpado, então fica confuso demais para um camponês como eu. Confusa fica a filosofia. Mas a tal Ciência como conhecimento da verdade que o crítico Walner descreve como tendo começado a existir do séc. XVI para cá é outra coisa. Desculpe, primo, mas Galileu pode até ter inventado a ciência experimental ("para quê fazer objeto de fé aquilo que se pode constatar diretamente por experimentos?", algo assim) é uma mera OUTRA COISA, que não aquilo que se discutia na antiguidade. Ah, um dia vamos conversar sobre o caso Galileu, o qual já estudei diversas vezes em autores renomados tanto cristãos como ateus.

    3) Permita-me ser contundente: a Gnose refutada no artigo não senão uma outra gnose diferente de qualquer atual que segue à margem de qualquer apego à doutrina cristã; a gnose refutada no artigo é o gnosticismo que pretendia ser a verdade cristã. E neste âmbito de verdade é de importância essencial dizer-se defensora e portadora da plenitude da doutrina de Cristo. Doutrina que chegara naquele século (II, III ou IV, etc) por meio do testemunho de homens que deram a vida por ela.

    De novo, para ser contundente: Galileu estava certo no argumento que apresentou para provar seu heliocrntrismo? Na época, o que eram os conceitos de teoria e conjectura? E hoje, de acordo com a ciência moderna, o que é uma teoria e uma conjectura? Qual foi literalmente a condenação de Galileu pela Igreja (pela Congregação responsável pelo caso)? Não é com o objetivo de discutir o caso Galileu, que poderia ser objeto de outro artigo e tópico de discussão, mas apenas para voltar aos conceitos-chave da crítica do crítico Walner: ciência moderna é boa, ciência antiga é mito.

    Finalizo: a ciência antiga saltou da fase do mito para a da razão com a filosofia grega.

    Sobre a ciência moderna e basicamente experimentativa (e que abandonou a metafísica): "Leis, salsicha e ciência moderna... huumm é muito bom, mas se você soubesse como é que é feita..."

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